Percequê…
Já há algum tempo que procuro entender as possíveis causas que podem interferir com a decomposição visual de um determinado objeto. O meu ponto de partida é, inevitavelmente, o da Filosofia. O exemplo mais comum, desde as minhas aulas de Filosofia do Conhecimento, é que se eu colocar um cesto do lixo à frente de uma pessoa e perguntar - "o que é isto?" - a resposta (maioritária) será "um cesto do lixo". Contudo, podemos assumir que depende do contexto. Poderá responder do ponto de vista da linguística e/ou significação, do ponto de vista material (em que o cesto do lixo é um objeto em termos ontológicos), ou do ponto de vista da perceção, etc., sendo que fenomenologia, perceção visual e/ou representação significam coisas diferentes consoante a área epistémica.
Um Investigador da psicologia experimental explicou-me que a maioria das pessoas acaba por reconhecer a tridimensionalidade do objeto mesmo sem o ver na sua totalidade – algo que corresponderia ao que James Gibson denominou por affordances, isto é: reconhecer a funcionalidade independentemente de não vermos a totalidade. Ou seja, tudo passa a depender da forma como usamos o ambiente exterior, ou os dados que temos dos padrões de estimulação...
Ora, o exemplo do cesto do lixo serviu para perceber - à luz de Gibson - que percecionamos "affordances" que acabam por ser contextuais e depender das próprias motivações. Assim sendo, o cesto do lixo poderia ser "afford" e servir como capacete. É muito interessante pensar que o reconhecer da funcionalidade pode cortar, mas não será o funcionalismo em si mesmo uma contradição social?
Também um neurologista me explicou, que os estudos têm demonstrado que no cérebro coexistem duas vias de processamento da informação, as quais estão anatomicamente e funcionalmente separadas; uma a processar maioritariamente as informações sobre o reconhecimento do objeto (representações) e a outra a processar a informação para a ação. Ou seja, existem duas vias de processamento da informação visual – uma, nomeada de dorsal stream (pela parte superior do cérebro; ex. lobo parietal) que processa a localização do objeto; a outra, nomeada de ventral stream (pela parte inferior do cérebro; ex. lobo occipitotemporal) que processa o que é o objeto. Poderá a resposta, à presença do objeto, depender do ponto de partida: fenomenologia, perceção visual e/ou representação? E o processamento da informação precisará, em absoluto, das representações?
Isto leva-me, de novo, à questão da decomposição do objeto e à oposição entre "sim, precisamos de representações" e/ou "não, percebemos diretamente o mundo" (Direct Perception, da Claire Michaels & Claudia Carello).
Seria estranho que do ponto de vista filosófico não se observasse nesta leitura das neurociências: i) uma certa tendência para o apagamento da diferença ontológica que o pensamento Heideggeriano nos deixou; ii) a clássica tendência para o mundo empiricista de David Hume que – não mais, não menos, culmina na destruição da noção de objeto. Resumindo – destruindo o estatuto ontológico de objeto não se anula a possibilidade da perceção interferir com o mesmo ou de o próprio objeto interferir na sua perceção?
Entende-se, contudo, que se quando a luz bate nos meus olhos, para percecionar o brilho e a cor de um determinado objeto, tenho que separar a refletância (luz total) do objeto e a luz que o ilumina. Então, os dados empíricos surgem, mas nós fazemos a sua compensação – exemplo: luz artificial = perceção mediada vs. perceção direta. Os olhos podem, assim, receber um padrão de luz complexo, sendo resultante da soma da refletância (propriedade física), do objeto e da sua iluminação (propriedade física). Ora, o exemplo da estimulação visual serve para perceber que ela não específica um determinado objeto. Daí que, a hipótese passa por perceber se o sistema nervoso faz inferências mediadas por representações (que sustentam essas constâncias), ou se o padrão de estimulação de uma pessoa que explora o mundo pode ser diretamente captado pelos seus órgãos sensoriais. Serão as inferências mediadas?
Lia Raquel Neves (Cientista Social)
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Lia Raquel Neves
Lia Raquel Neves formou-se em Filosofia, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, integrando, de seguida, o Mestrado em Saúde Pública, na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, elaborando a tese: «A Saúde como Autêntico Problema de Saúde Pública». Nos últimos cinco anos trabalhou no Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (Grupo de História e Sociologia da Ciência), investigando questões que entrecruzam a filosofia e sociologia da ciência com a evolução histórica e científica do conceito de saúde, bem como questões de ética prática e bioética. Posteriormente, trabalhou no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, tendo integrado o projeto "Intimidade e Deficiência: cidadania sexual e reprodutiva de mulheres com deficiência em Portugal", onde fez parte do Núcleo de Estudos sobre Democracia, Cidadania e Direito (DECIDe). Já em Lisboa integrou a reta final do projeto Genetics Clinic of the Future (financiado pela Comissão Europeia no âmbito do Horizonte 2020) sediado no grupo de Ciência e Políticas no Instituto de Tecnologia Química e Biológica da Universidade Nova de Lisboa.
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