Como surgiram as nossas células?
Por: António Piedade
O estudo da origem e evolução das células no nosso planeta é uma das áreas mais estimulantes e fascinantes da ciência. Prende-se não só sobre compreender a origem da própria vida, mas também sobre como é que a complexidade celular evoluiu a partir das primeiras células simples para dar origem às células que compõem os animais, as plantas, os fungos e os protozoários.
Os animais e as plantas são edificados por células ditas eucarióticas. Estas são caracterizadas, entre outros aspectos, pelo facto de possuírem um núcleo rodeado por uma membrana onde se situam os cromossomas com a informação genética. Também se caracterizam por possuírem no seu interior organelos como as mitocôndrias e os cloroplastos, e um elaborado e dinâmico sistema de membranas que formam vesículas, que asseguram um transporte conveniente de diversas substâncias, não só no interior da célula, mas também entre o interior e o exterior celular. As células eucarióticas possuem também um complexo sistema de microfibrilhas proteicas, com várias funções, entre elas a de formar um citoesqueleto. Como é que surgiram estas complexidades todas ao longo da evolução celular?
As bactérias são outro domínio celular da vida. São consideravelmente mais simples do que as células eucarióticas, pois não possuem compartimentos intracelulares e o cromossoma circular que possuem não está encapsulado num núcleo. São consideradas muito mais antigas evolutivamente do que as células eucarióticas
No início da década de 80 do século passado, a bióloga norte-americana Lynn Margulis (1938 – 2011; foi casada com Carl Sagan) propôs a teoria endossimbiótica para a origem das células eucarióticas. Segundo esta, as mitocôndrias e cloroplastos das células eucarióticas teriam surgido da associação de bactérias que se tornaram hospedeiras de uma outra célula microbiana. Esta teoria é hoje consensual entre a comunidade científica. Propõem-se, actualmente, que as mitocôndrias terão sido originadas de um grupo bacteriano conhecido e relacionado com as alphaproteobactérias.
Mas qual a origem da célula hospedeira? Teria sido um outro tipo de bactéria? Não! O conhecimento hoje disponível indica que a célula hospedeira teria pertencido a um outro domínio celular também muito antigo evolutivamente e conhecido por arqueia (palavra de origem grega significando antigo). As arqueias e as bactérias ter-se-ão separado na árvore da vida a partir de um ancestral comum e divergido evolutivamente.
As diferentes espécies de arqueias que se têm descoberto nos últimos anos possuem algumas características, principalmente genéticas, que estão ausentes nas bactérias e que se assemelham mais às das células eucarióticas. Assim, o conjunto de informação entretanto reunido sobre as arqueias coloca-as como as principais candidatas a terem sido as células antepassadas das eucarióticas. E as mais recentes técnicas de sequenciação genética têm permitido sondar o passado evolutivo na procura dessas semelhanças.
Neste contexto, foi publicado, no passado dia 19 de Janeiro de 2017 na revista Nature, um artigo (http://www.nature.com/nature/journal/vaop/ncurrent/full/nature21031.html
) que apresenta uma nova espécie de arqueia com características genéticas muito interessantes. Neste artigo, que tem como primeiro autor o sueco Thijs Ettema, os cientistas sequenciaram material genético recolhido de vários locais e identificaram um novo grupo de arqueias referido no geral por arqueias de Asgard. Segundo o microbiólogo António Veríssimo, professor do Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra, o “novo grupo de arqueias têm duas características muito interessantes: são muito antigas (do ponto de vista evolutivo) e parecem partilhar um ancestral comum com as células eucariotas e, para além disso, foram reconhecidas sequências genéticas que codificarão proteínas consideradas especificas de eucariotas e relacionadas com a translocação (“transporte”) de proteínas nas células com compartimentos celulares. Isto sugere que a origem de sistemas complexos de translocação de proteínas terá evoluído antes das mitocôndrias ou de outra maneira antes do hospedeiro ter “recebido “ as bactérias que originaram as mitocôndrias. E é mais uma informação importante que reforça a ideia que o hospedeiro original terá sido uma célula de tipo arqueia.”
É preciso referir que os cientistas ainda não conseguiram isolar estas arqueias de forma a poderem observar directamente as características relacionadas com os genes identificados no seu genoma agora sequenciado. Seria muito interessante poder-se observar e comparar as eventuais estruturas celulares que terão estado na origem da complexidade eucariótica.
De qualquer forma, esta descoberta vem adicionar mais algumas peças do puzzle que continua a ser a evolução da vida complexa no nosso planeta.
António Piedade
© 2017 - Ciência na Imprensa Regional / Ciência Viva
António Piedade
António Piedade é Bioquímico e Comunicador de Ciência. Publicou mais 700 artigos e crónicas de divulgação científica na imprensa portuguesa e 20 artigos em revistas científicas internacionais. É autor de nove livros de divulgação de ciência: "Íris Científica" (Mar da Palavra, 2005 - Plano Nacional de Leitura),"Caminhos de Ciência" com prefácio de Carlos Fiolhais (Imprensa Universidade de Coimbra, 2011), "Silêncio Prodigioso" (Ed. autor, 2012), "Íris Científica 2" (Ed. autor, 2014), "Diálogos com Ciência" (Ed. autor, 2015) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Íris Científica 3" (Ed. autor, 2016), "Íris Científica 4" (Ed. autor, 2017), "Íris Científica 5" (Ed. autor) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Diálogos com Ciência" (Ed. Trinta por um Linha, 2019 - Plano Nacional de Leitura) prefaciado por Carlos Fiolhais. Organiza regularmente ciclos de palestras de divulgação científica, entre os quais, o já muito popular "Ciência às Seis". Profere regularmente palestras de divulgação científica em escolas e outras instituições.
Veja outros artigos deste/a autor/a.
Escreva ao autor deste texto
Ficheiros para download Jornais que já efectuaram download deste artigo