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Uma área com muitas áreas: Wernicke.

13 Fev 2017 - 12h51 - 3.520 caracteres

Demorei muito tempo para perceber que não me é possível questionar a relação entre filosofia da linguagem e perceção sem que entenda primeiro a relação da primeira com a área supra-temporal-parietal esquerda do cérebro, referida por Wernicke. Esqueci-me de questionar o fundamental, como se dá a organização de categoremas (noção desde Aristóteles que possibilita a enunciação ou colocação de um objeto numa determinada categoria) no caso de se verificar uma lesão na área de Wernicke (afasia de Wernicke)?

De um modo leigo, pensei que esta área organizava a informação, o conhecimento; tinha inclusive uma ficção quanto ao facto de um dia se poder aumentar a capacidade de armazenamento e organização de informação através de um implemento biónico - dada a existência de vários protótipos de próteses para o hipocampo (ex. trabalho em desenvolvimento pelo Theodore Berger). Contudo, esta declaração é ilusória e totalmente diferente de dizer que Wernicke é “área onde ocorre a compreensão da linguagem” (Jeffrey R. Binder (2015), “The Wernicke area. Modern evidence and a reinterpretation”, in Neurology 85).

Esta declaração não impede, contudo, de perguntar se há algum papel na compreensão da linguagem proveniente da área de Wernicke, e ainda, de outro modo, questionar se esta tem funções para lá da sua funcionalidade anatómica?

O artigo anteriormente indicado (do Berger) sugere-nos que a produção de fala e compreensão são diferentes, ou seja, i) se uma pessoa apresentar uma afasia de compreensão, ou seja, uma alteração na formulação e compreensão da fala (afasia expressiva), não só não compreende o que é dito (do ponto de vista do processamento semântico), como não vai conseguir repetir o que dizemos - apesar de conseguir manter um fluxo de discursivo, ainda que incompreensível devido às parafasias fonémicas (ex. camisa --> tamisa) e/ou literais (ex. mesa --> porta), ou outros neologismos. Este facto permite-nos assumir que a área de Wernicke é responsável pela recuperação fonológica que, em última instância, permitirá qualquer tarefa de produção de fala (ex. repetição). Todavia fica a questão ii) poderá, em detrimento do ponto i) assumir-se que a área de Wernicke é apenas responsável por agrupar as palavras corretamente em fonemas imediatamente antes de serem produzidas, de forma motora (pela boca), não tendo nada que ver com a compreensão das mesmas? E, assim sendo, a compreensão da fala não depende de uma outra rede fonética – de um processamento semântico que depende, em simultâneo, das áreas corticais de associação no cérebro?

 

Lia Raquel Neves (Cientista Social)

Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva

 

 

Imagem disponível em: http://www.acbrown.com/neuro/Lectures/Lang/NrLangSpch.htm


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Lia Raquel Neves

Lia Raquel Neves formou-se em Filosofia, na  Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, integrando,  de seguida, o Mestrado em Saúde Pública, na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, elaborando a tese: «A Saúde como Autêntico Problema de Saúde Pública». Nos últimos cinco anos trabalhou no Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (Grupo de História e Sociologia da Ciência), investigando questões que entrecruzam a filosofia e sociologia da ciência com a evolução histórica e científica do conceito de saúde, bem como questões de ética prática e bioética. Posteriormente, trabalhou no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, tendo integrado o projeto "Intimidade e Deficiência: cidadania sexual e reprodutiva de mulheres com deficiência em Portugal", onde fez parte do Núcleo de Estudos sobre Democracia, Cidadania e Direito (DECIDe). Já em Lisboa integrou a reta final do projeto Genetics Clinic of the Future (financiado pela Comissão Europeia no âmbito do Horizonte 2020) sediado no grupo de Ciência e Políticas no Instituto de Tecnologia Química e Biológica da Universidade Nova de Lisboa.  


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