Onde está o Danio? – nos bastidores do Zebrafish
Sentiam-se vozes a conversar do outro lado. À hora combinada, hora de almoço por ser menos turbulento, após leves batidas na porta branca metálica intitulada “Fish Facilites”, Lara Carvalho recebe com um largo sorriso e estendendo de imediato a mão, convida a entrar. Fazem-se as apresentações. Lara é a gestora da unidade. Zela pelo bem-estar animal dos peixes-zebra desde que este biotério foi construído no Instituto de Medicina Molecular (IMM) por António Jacinto em 2007. Lara é também quem coordena a visita de quem se interessa por este modelo de estudo animal. Licenciada em Biologia Marinha e Pescas pela Universidade do Algarve, o seu mestrado em biologia marinha foi sobre o peixe-zebra e iniciou a sua carreira no Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC) onde, sob orientação de Leonor Saúde, montou este modelo de estudo de animal vertebrado.
Num espaço em forma de corredor, com vários equipamentos arrumados ao longo das bancadas, encontram-se duas alunas a visualizar silenciosamente imagens ampliadas num computador. Lara abre uma segunda porta, pede para passar os pés sobre o tapete impregnado de desinfectante, e em dois passos fica-se rodeado de estantes preenchidas de aquários, criteriosamente alinhados e etiquetados - no interior de cada um deles os peixes agitam-se em movimentos rápidos, ora aproximando-se, ora afastando-se. Neste movimento nervoso notam-se ainda mais as riscas que ostentam no corpo, e que lhe deram nome: Zebrafish, cientificamente designados de Danio rerio. A rematar as riscas, os olhos grandes destes peixes parecem vigiar quem por eles passa.
A conversa inicia-se sobre como chegam estes peixes ao biotério. “Na realidade procuramos não receber peixes adultos. Só embriões pois estes podem ser lixiviados. Evitam-se assim doenças nos aquários”. A secção da maternidade está à parte. Macho e fêmea veem-se, mas não se tocam. Há um separador de vidro vertical a dividir o pequeníssimo aquário onde passaram a noite. De manhã passa-se um coador de rede fina na água para retirar os ovos. A taxa de reprodução é elevada. Lara mostra uma pilha de caixas de Petri onde se reuniram os ovos, à deriva num meio nutritivo. A observação ao microscópio, e num campo escuro revela em grande dimensão os ovos translúcidos de zebrafish.
E como é a alimentação? Numa sala diferente, sobre uma mesa, um tubo vertical em acrílico transparente contendo um caldo rosado é arejado por uma bomba de aquário. Com uma pipeta, Lara aspira uma pequena amostra do caldo e novamente o microscópio revela uns organismos irrequietos. Desta vez vemos uma espécie de crustáceos, chamados de artémia salina. Os peixes adultos podem também receber ração seca. Lara deita a mão a um frasco branco e diz com orgulho: “agora compramos a ração a uma empresa portuguesa que tem trabalhado muito bem no desenvolvimento de alimentos para aquacultura”. Quanto aos fins-de-semana há uma escala de recrutamento, para assegurar que os peixes comem. Lara aponta para um grande calendário que forra a porta do biotério na parte de trás. Nele lêem-se os nomes dos alunos que usam estas instalações, distribuídos temporalmente para que ninguém fique excluído.
A conversa é interrompida. Um colaborador de Carlota Saldanha precisa de esclarecer qualquer coisa com Lara. Carlota Saldanha é uma das utilizadoras do modelo de zebrafish para estudo da inflamação e enfarte do miocárdio.
Lara volta à conversa, não sem antes reposicionar alguns aquários que tinham sido lavados e que estavam a secar. Diante de uma prateleira de aquários Lara descreve como cruzam os peixes e mantêm as linhas. Wilde-type, mutantes e transgénicos são nomes usados de forma trivial para as várias espécies de zebrafish, pelo menos para os que de forma rotineira usam este modelo de vertebrado. Cada aquário tem número limite da mesma espécie. A etiqueta identifica também o investigador que usa essa espécie e o projecto científico. Tudo é personalizado. Há mais investigadores do IMM que usam este modelo animal, “por exemplo esta fila de aquários mantém uma linha transgénica usada pelo Cláudio Franco, investigador principal do IMM que estuda os mecanismos moleculares envolvidos na formação das redes de vascularização. Damos também apoio a empresas que se dedicam ao desenvolvimento de biofarmacêuticos”, acrescenta Lara.
Lara fala agora das vantagens do modelo: o zebrafish partilha connosco (humanos) 70% do genoma. Além disso o modelo explora todas as fases de desenvolvimento do peixe. Há estudos feitos com os ovos, outros usam os embriões, e muitos usam o peixe adulto. É o caso de Diana Chapela. Licenciada em Biologia Molecular e Genética pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, optou por fazer um mestrado em Biologia Evolutiva e do Desenvolvimento. Agora é aluna do programa doutoral M2B, o seu trabalho é orientado por Leonor Saúde no IMM.
Sentada num banco giratório e sem desviar os olhos da objectiva Leica do microscópio, Diana relata: “O meu trabalho aborda a renovação tecidular da espinal-medula do peixe, induzida por novos fármacos, por pequenas moléculas. Já estudei a regeneração dos neurónios motores em peixes adultos e agora estou a tentar estudar em embriões, mais pequenos, portanto.” Diana coordena com segurança as duas mãos. Uma segura a pinça e outra, um pequeno estilete de madeira. À vez, toca com estes instrumentos na placa de Petri onde se encontram os embriões. “Normalmente consigo fazer 300 lesões em duas horas e meia. Depois deixo os peixes ou embriões sossegados no meio de crescimento e vamos, ao longo do tempo, observando a sua capacidade de recuperar a mobilidade, e que é consequência da excelente regeneração tecidular destes animais. Ao fim de um a dois dias já é possível vê-los a agitarem-se! Espreite aqui o microscópio para ver como é fácil!” Na realidade os embriões não só estão ampliados, como têm a espinal medula impregnada de fluorescência, destacando-se o tecido que se pretende estudar. Perante o comentário sobre a estranha imobilidade do embrião ao microscópio, Diana sorri e esclarece: “os embriões estão temporariamente anestesiados! Doutra forma não seria capaz de os estudar.”
Ainda há tempo para Lara mostrar a sala de quarentena, onde são colocados todos os peixes comprados em fase adulta, ou peixes que estiveram em contacto com fármacos ou substâncias tóxicas. “Não se podem correr riscos de contaminação ou propagação de doenças que comprometam o funcionamento das facilities”, afirma Lara com segurança. É como o ciclo de luz nas salas. Ninguém pode entrar na sala dos aquários entre as 8 horas da noite e as 8 horas da manhã. Durante este período de tempo a sala está às escuras para permitir aos peixes terem alternância de noite e dia. São pormenores que têm uma grande influência no bem-estar e no desenvolvimento dos zebrafish.
Antes de finalizar a visita, Lara fala no Projecto CONGENTO (Consórcio para Organismos Geneticamente Rastreáveis) e nas modificações que poderão daí resultar, no que diz respeito à utilização de modelos animais na investigação. A ideia é criar uma rede nacional de infraestruturas, em que a Fundação Champalimaud, o IMM, o IGC e o Cedoc (Centro de Investigação de Doenças Crónicas) passariam a organizar-se de forma concertada no apoio à ciência que usa os modelos de organismos geneticamente manipulados, como é o caso da mosca Drosophila, do zebrafish e do ratinho.
No hall da Fundação Champalimaud às 11h em ponto, Catarina Ramos, coordenadora do Gabinete de Comunicação de Ciência da Champalimaud Research, pergunta ao segurança da recepção onde está o visitante agendado para hoje. Com um sorriso sereno apresenta-se e conduz o visitante para o interior do Centro Champalimaud para o Desconhecido. No segundo piso, o elevador abre-se e a estrutura em corredor revela gabinetes de trabalho rasgados pela luz natural e grupos de três ou quatro pessoas que trocam impressões em trânsito. Catarina propõe tomar um café nas mesas agrupadas no fundo do edifício, onde a parede vítrea permite um olhar amplo sobre o rio Tejo. Trás consigo um catálogo “onde se resumem os grupos de investigação sediados na Fundação, nomeadamente os que exploram o modelo de vertebrado zebrafish”, acrescenta Catarina, ao mesmo tempo que o segura entre mãos e o folheia procurando as fotografias dos investigadores.
Apresenta as linhas gerais da Fundação Champalimaud, onde trabalha desde Abril de 2013. Fala das duas áreas de investigação – cancro e neurociências – onde se centralizam todas as actividades científicas da Fundação. E não se esquece de descrever a nova ala de cirurgia e internamento para doentes oncológicos, que até aqui só dispunham de regime em ambulatório. Catarina enfatiza então “a relação de extrema proximidade entre as equipas clínicas e as de investigação, que dá à Fundação notoriedade e uma personalidade única em Portugal”.
Catarina pede a Maria, sua colaboradora do gabinete de comunicação, que desvenda qual o acesso mais rápido ao biotério da Fundação. Descendo a um piso abaixo de zero, o elevador conduz a um local amplo e claro mas agora desprovido da agradável iluminação natural que se desfrutava no 2º andar.
Ana Catarina Certal, responsável pela Plataforma de Peixes, aguardava junto dos gabinetes onde trabalham todos os que se ocupam das tarefas de manutenção das Plataformas Animais. Estas distribuem-se por um número elevado de salas, pois a Fundação disponibiliza aos seus investigadores os modelos experimentais de ratinho e de rato, o modelo da mosca e o modelo de zebrafish, para o qual nos dirigimos, não sem antes colocar forras nos pés, uma bata e uma touca.
Ana Certal abre a sala onde se encontram os mais de 25 mil zebrafish. “Esta sala está à espera de uma terceira fila de aquários, pois ainda não esgotámos a nossa capacidade de alojamento”, diz Ana. E rapidamente se percebe porque se fala em inovação. Os modelos de estudo que se tentam implementar resultam de um trabalho de equipa entre Ana e os investigadores que usam o modelo de zebrafish. É um trabalho que tem várias escalas, desde o mecanismo molecular até ao ensaio clínico, passando intermediariamente por estes modelos de estudo.
“Por exemplo, este zebrafish que aqui vemos é um mutante que não apresenta riscas, é completamente translúcido, simplificando podemos chamar-lhe albino”, descreve Ana. É usado pela equipa de Michael Orger. Com este modelo é possível ver a resposta cerebral a um estímulo visual do peixe. Há uma sequência de intensidades fluorescentes desencadeadas por alterações de níveis de cálcio, durante a passagem da informação entre as células nervosas, e que decorrem em certas zonas do cérebro do peixe. “É como seguir o rasto da informação transmitida ao longo das células, mas em tempo real!”, conta Ana com um ar entusiasmado.
“Outro desafio tem sido o projecto de Rita Fior e Miguel Godinho, em que tumores humanos (para os quais há poucos ou não há marcadores) são inoculados no peixe-zebra e estes depois são tratados com os protocolos de quimioterapia usualmente usados na prática clínica. A resposta observada de redução (ou não) do tumor – normalmente em uma semana - ajuda o clínico a identificar qual o tratamento mais adequado a escolher para aquele doente. Caminhamos para terapêuticas personalizadas, o que é espantoso”, remata Ana.
Ana afasta-se um pouco para trás, pois o robot que alimenta a fila de aquários mudou de posição e está a deitar a quantidade programada de alimento em cada um dos aquários. Ajeita os depósitos que contêm os diferentes tipos de ração, fala das granulometrias e das quantidades em função da idade do peixe. E há outros alimentos, preparados numa sala ao lado, como por exemplo zooplâncton, um “caldo esverdeado” usado para alimentar os zebrafish nas suas primeiras semanas de vida. Nesta fase do seu desenvolvimento são tão pequenos que dão a miragem de aquários vazios.
A qualidade e os circuitos da água utilizada são outra preocupação para Ana. Levantando as tampas dos depósitos, descreve “nesta sala temos os filtros, os sistemas automáticos de medição do pH e de teor em sais, bem como as lâmpadas de ultra-violeta que controlam os micro-organismos da água. No caso de valores anormais, uma aplicação do sistema permite notificar de imediato o engenheiro da manutenção que zela por esta sala. E podemos actuar rapidamente!”.
Entretanto a conversa deriva para o uso deste modelo em estudos de comportamento. Uma área em real expansão. Ana entra na sala usada para estes estudos. Mais parece um estúdio fotográfico. Atrás de uma das cortinas que dividem esta sala em mini-estúdios, Marta autoriza a nossa entrada “sim, não perturbam a experiência pois estou agora a começar!”. Marta é aluna de doutoramento na equipa de Gonzalo de Polavieja e naquele momento já tinha individualizado os peixes da experiência em pequenas áreas quadradas, onde ficam muito quietos e incapacitados de se verem uns aos outros. Dentro de umas horas, após cada peixe fazer o reconhecimento do seu território, serão retiradas as divisórias, e passarão a estar dois peixes em cada divisão. Começa então uma luta de defesa pelo seu território, que é filmada para ser interpretada em termos de padrões de comportamento. “Sabe-se que os peixes se reconhecem pelas riscas, e que guardam memória desse reconhecimento. Por exemplo, os wildederived são muito mais agressivos que os domesticados, a ponto de saltarem do aquário”, comenta Ana. Marta dá mais pormenores: procura usar peixes que tenham a mesma idade, o mesmo tamanho e tenham estado em condições ambientes iguais, por forma a eliminar variáveis que influenciam os comportamentos. Só não se consegue uniformizar as riscas. Estas são as impressões digitais dos peixes e são um código de identificação.
No cumprimento do circuito da visita, Ana mostra ainda a sala de quarentena, uma espécie de isolamento a dois níveis, para peixes adultos e embriões recentemente chegados ao biotério. Das cinco lupas presentes na sala adjacente, uma é exclusiva para observação e manipulação dos animais em quarentena. Tal como nas estufas, sempre a 28oC, onde também se fizeram adaptações aos cuidados necessários, como foi a colocação de Leds que mimetizassem o período diurno.
Agora, já despidos das protecções descartáveis, junto dos gabinetes e em grupo com outros colaboradores, nomeadamente Isabel Campos - responsável máxima do biotério, fala-se casualmente no Congento e no trabalho desenvolvido com o modelo de zebrafish por outros membros da comunidade científica nacional, “a qual se recorre muitas vezes quer da Fundação, quer do IMM”, esclarece Ana. (ver caixa)
Ana Catarina Certal actualmente é também coordenadora da Plataforma de Ferramentas Moleculares e Transgénicas da Fundação Champalimaud. Na página da Fundação encontra-se a seguinte notícia a respeito de Ana: “Foi eleita membro da Zebrafish Husbandry Association Executive Board. Pela primeira vez na história dessa associação, criada há 10 anos nos Estados Unidos da América e com membros em mais de 15 países, foi nomeado e eleito um presidente não americano”.
Definitivamente, um “riscado diferente”!
Uma avaliação do número de artigos científicos publicados em revistas internacionais, e que conjugam no termo de pesquisa, zebrafish e Portugal, revela um crescimento enorme na utilização deste modelo-animal pela comunidade científica portuguesa (214 artigos científicos entre 2001 e 2016).
Leonor Cancela- Professora da Universidade do Algarve, é talvez a investigadora pioneira no uso do modelo zebrafish em Portugal. Usa o peixe-zebra para estudos de genoma e desenvolvimento do esqueleto em vertebrados.
Amadeu Soares – Professor da Universidade de Aveiro, do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (CESAM), usa o zebrafish para estudos em ecotoxicologia aquática e terrestre.
Miguel Machado dos Santos- Investigador no Centro Interdisciplinar de Investigação marítima e ambiental (CIIMAR)- usa o modelo do zebrafish para avaliação do risco dos produtos químicos perturbarem o sistema endócrino.
Ana Maria Coimbra- Investigadora no CITAB- Centro de Investigação e Tecnologias Agro-ambientais e Biológicas, da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Usa maioritariamente o modelo de zebrafish para estudos de toxicologia ambiental.
Rui Oliveira- Professor de Biologia Comportamental, no Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA). É investigador na Fundação Champalimaud e no IGC. Nos seus estudos sobre neuro-endocrinologia comportamental e genómica utiliza o modelo do zebrafish, observando e avaliando os comportamentos de socialização deste peixe.
Maria de Jesus Perry
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Maria de Jesus Perry
Maria de Jesus de Almeida Rainha Perry da Câmara Saldanha Rocha é professora e investigadora na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, no Departamento de Química Farmacêutica e Terapêutica. Doutorada nesta área científica, tem dedicado o seu tempo de investigação ao desenvolvimento de fármacos anti-tumorais, nomeadamente para o melanoma e glioblastoma. Há um ano iniciou um novo projecto: fazer o Mestrado de Comunicação de Ciência da FCSH, UNL. Esta experiência trouxe novos desafios, entre eles o gosto pela comunicação em ambiente não lectivo e para diferentes públicos. Temáticas como a toxicologia, ambiente, biodiversidade, nutrição, preservação de património, etc…são sempre apetecíveis para abordar em conversa escrita. É neste universo que dá agora os primeiros passos, procurando contribuir para a comunicação de ciência em contexto não formal.
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