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«Por vezes uso fita gomada e uma carica, ao estilo de MacGyver»

19 Out 2017 - 17h22 - 10.572 caracteres

Nascido em Lisboa, João Melo de Sousa é engenheiro mecânico e engenheiro aeroespacial. Esta entrevista foi realizada no âmbito do GPS - Global Portuguese Scientists, um site onde estão registados os cientistas portugueses que desenvolvem investigação por todo o mundo.

 

Entrevista:

 

Pode descrever de forma sucinta (para nós, leigos) o que faz profissionalmente?

 

Sou professor de Engenharia Mecânica e Engenharia Aeroespacial no Instituto Superior Técnico. Naturalmente, a grande prioridade de um docente universitário consiste no ensino das matérias, contribuindo desse modo para a formação de profissionais de nível superior. Todavia, espera-se igualmente que nos mantenhamos na vanguarda da nossa área, transmitindo aos nossos alunos não apenas o conhecimento já sedimentado, mas também as mais recentes inovações. Este aspecto é muito importante, de modo a garantir que os novos profissionais se formam actualizados tecnicamente, quer estes venham a integrar o mercado de trabalho na indústria ou serviços, quer no caso de optarem por permanecer no meio académico.

Neste âmbito, existe uma componente muito importante da minha profissão que consiste em realizar investigação científica, isto é, desenvolver um conjunto de actividades com o objectivo de produzir novos conhecimentos, usando para o efeito o método científico. Divido o meu tempo dedicado à investigação entre os testes em túnel de vento e a simulação computacional, estudando fenómenos relacionados com a aerodinâmica de veículos aéreos. Nas simulações computacionais são desenvolvidas ferramentas especializadas usando programação de alto nível, o que nos obriga a sermos muito organizados e lógicos. No túnel de vento estamos rodeados de lasers e sensores avançados, mas frequentemente também somos confrontados com problemas onde a solução prática passa por usarmos fita gomada e uma carica, ao bom estilo do agente “MacGyver” – uma série televisiva dos meus tempos de aluno.

 

Agora pedimos-lhe que tente contagiar-nos: o que há de particularmente entusiasmante na sua área de trabalho?

 

A minha adolescência foi passada a ler livros de Júlio Verne, a assistir a séries de ficção científica como o “Espaço 1999” e a montar kits de aviões, embora ocasionalmente também desse uns pontapés na bola e andasse de bicicleta com os amigos. Muito cedo percebi que queria ser engenheiro, embora não tivesse bem a certeza de quê, pois havia muitos assuntos que me interessavam. A paixão pelas máquinas voadoras acabou mais tarde por se sobrepor a tudo o resto, inclusivamente porque se trata de uma área muito interdisciplinar.

Os temas abordados ao longo da minha carreira como investigador têm sido muito diversos, mas quase invariavelmente ligados à aerodinâmica de veículos aéreos. Nos anos seguintes ao meu doutoramento, dediquei-me ao estudo e desenvolvimento de tecnologias com o objectivo de tornar os aviões mais eficientes e menos poluentes. São tecnologias de risco, como por exemplo o chamado “controlo do escoamento laminar”, mas que já estamos a ver serem incorporadas em algumas versões das últimas gerações de aviões de transporte comercial. O seu uso será generalizado quando nas próximas décadas assistirmos ao regresso do transporte supersónico. Mais recentemente, tenho-me dedicado também ao extremo oposto do espectro em termos de dimensão e velocidade das aeronaves: os veículos aéreos autónomos que têm a popular designação de “drones”. À medida que os pretendemos miniaturizar cada vez mais, chegando à escala dos insectos, somos permanentemente confrontados com novos e cativantes desafios que ambicionamos vencer.

 

 

Por que motivos decidiu emigrar e o que encontrou de inesperado no estrangeiro?

 

Embora tenha realizado os estudos de doutoramento no Instituto Superior Técnico, tive a sorte de o fazer integrado num grupo de investigação com ligações internacionais, tendo passado algum tempo no Netherlands Aerospace Center (NLR), nos Países Baixos. Coincidiu também com um período de grande expansão em termos da participação portuguesa em projectos europeus, relacionados com a área aeroespacial ou não, na esteira da adesão de Portugal à União Europeia em 1986. Deste modo, apercebi-me da importância dos contactos internacionais e da colaboração com equipas estrangeiras, em especial na minha área de investigação.

 

No meu departamento somos incentivados a passar as licenças sabáticas, que são habitualmente concedidas aos professores universitários em cada sexénio, no estrangeiro. Felizmente foi possível, do ponto de vista familiar (sou casado, com dois filhos menores), conjugar todas as vertentes da questão de modo a passarmos um ano lectivo completo em Pasadena, nos Estados Unidos, com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Fui, mais uma vez, muito bem recebido no California Institute of Technology (Caltech), onde já tinha passado uma temporada em 2010. A integração foi muito fácil e trata-se de uma oportunidade excelente, quer pelos recursos técnicos a que tenho acesso, quer pelos contactos estabelecidos, na medida em que para esta muito prestigiada instituição confluem investigadores de todo o mundo. E devo também afirmar que, salvaguardadas as devidas distâncias, me sinto especialmente honrado por ser visiting scientist no Caltech, onde Albert Einstein o foi por várias vezes, e onde ainda Theodore von Kármán (em conjunto com outros) criou o famoso Jet Propulsion Laboratory! O trabalho e o ambiente de partilha durante este ano permitem-me regressar com novas ideias para prosseguir o meu percurso de ensino e investigação em Portugal.

 

Que apreciação faz do panorama científico português, tanto na sua área como de uma forma mais geral?

 

Todos sabemos que, apesar da pequena dimensão do nosso país, faz-se investigação de grande valor em Portugal. Infelizmente, muitos investigadores são forçados a emigrar e a construir a sua carreira no estrangeiro. Ganham geralmente com essa decisão os cientistas em termos de condições e as instituições que os recebem, mas perde o país em termos de retorno do investimento realizado na sua formação superior. Assistiu-se, desde a década de 90 até há alguns anos atrás, a um crescimento notório da produção científica, o qual foi fruto de uma aposta pública na ciência, partindo de níveis irrisórios no panorama internacional. Houve uma resposta muito positiva dada pela nossa comunidade científica nesse período, talvez excedendo até as expectativas. Contudo, o cenário alterou-se, tendo-se verificado a dada altura uma inversão dessa aposta.

 

Não gostaria de politizar a questão, mas é importante que os governantes tenham um compromisso político com a ciência (e não só, diga-se!) duradouro. As decisões não podem andar ao sabor da esgrima política. Tem de existir uma estratégia de longo prazo, haver uma definição expressa de áreas prioritárias valorizando a investigação aplicada, mas sem desprezar a investigação fundamental. As universidades são ainda, maioritariamente, o local onde são criados centros de investigação científica. Todavia, a carreira de investigador tem sido maltratada; por sua vez, a renovação de quadros na carreira docente universitária tem tido uma expressão mínima, e as progressões encontram-se congeladas há muitos anos. Em consequência de tudo isto, a generalidade dos meus alunos considera que uma opção pela investigação científica é actualmente pouco menos do que um “salto de fé”, na medida em que não falta empregabilidade aos engenheiros da minha área.

 

Que ferramentas do GPS lhe parecem particularmente interessantes, e porquê?

 

Toda e qualquer iniciativa que se destine a promover o reconhecimento da obra dos investigadores portugueses na nossa sociedade se reveste da maior importância, tendo em conta o cenário actual que brevemente descrevi. É fundamental que exista uma consciência acrescida do retorno que uma aposta continuada na ciência tem para uma nação. Só deste modo o poder político poderá sentir a necessidade de não secundarizar o assunto na sua agenda, e as novas gerações continuarão a abraçar com paixão e sem temor a investigação científica. Notando também que muita da ciência portuguesa não é feita em Portugal, o papel do GPS assume uma relevância ainda maior ao coligir e agregar todo um conjunto de informações que, de outro modo, permaneceriam dispersas e, por via disso, com divulgação e impacto reduzidos no nosso país.

 

Consulte o perfil de João Melo de Sousa no GPS – Global Portuguese Scientists.

GPS é um projecto da Fundação Francisco Manuel dos Santos com a agência Ciência Viva e a Universidade de Aveiro.

 

GPS/Fundação Francisco Manuel dos Santos


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