Existe um mapa que diz ao cérebro para onde não olhar
Cientistas do Centro Champalimaud descobrem que num emaranhado de ligações neurais existe um organizado mapa que diz ao cérebro para onde não olhar.
Até aqui, não se percebia como se organizavam as ligações neurais “para trás” no sistema visual. Esse mistério foi agora resolvido.
Que o cérebro não é simples, não é novidade para ninguém. Mas que existem diferentes tipos de ligações neurais, umas que parecem ir “para a frente” e outras “para trás” é algo que ainda veio complicar mais o seu estudo.
Durante décadas, a existência de ligações densas no cérebro que parecem ir “para trás” tem desconcertado os neurocientistas. Estas ligações, que ligam áreas distantes do neocórtex – a parte do cérebro que é responsável pelas funções cognitivas superiores – servem claramente para transmitir importantes informações. Mas a sua organização – e daí o seu papel – era em grande parte desconhecida.
Agora, o mistério de longa data da organização das ligações neurais “para trás” no sistema visual acaba de ser resolvido. Cientistas em Lisboa, Portugal, descobriram que estas ligações dizem ao cérebro para onde não olhar.
Num estudo publicado na revista Nature Neuroscience (http://nature.com/articles/doi:10.1038/s41593-018-0135-z), cientistas do Centro Champalimaud, em Lisboa, revelam pela primeira vez que estas ligações formam um mapa notavelmente organizado do espaço visual e fornecem pistas importantes sobre a forma como elas poderão estar envolvidas na perceção visual.
“A nossa compreensão atual do sistema visual sugere um modelo hierárquico”, explica Leopoldo Petreanu, o líder do estudo. “Segundo este modelo, estruturas inferiores recebem uma imagem vinda dos olhos que é processada e transmitida para estruturas superiores do neocórtex, que extraem as suas características-chave, tais como contornos, objetos e por aí fora.”
“Este poderia ser um excelente modelo”, acrescenta Petreanu, não fosse um problema óbvio: existem tantas, se não mais, ligações que vão para trás, isto é, das áreas superiores para as inferiores. Há décadas que a função destas ligações de feedback permanece um mistério para os neurocientistas.
As tentativas anteriores para elucidar a natureza destas ligações têm gerado ainda mais confusão. “As ligações de feedback são muito confusas”, diz Petreanu. “Ao microscópio, parecem uma extensa rede de fios, emaranhados como esparguete num prato. E como se isso não bastasse, os fios emaranhados codificam vários tipos de sinais. Não era nada claro que houvesse qualquer ordem nessa confusão.”
Muitas teorias sobre o papel destas ligações de feedback na cognição têm sido propostas, incluindo atenção, expectativas e até consciência. Porém, era impossível saber qual delas estava certa, uma vez que não se sabia qual era o mapa destas ligações.
Para resolver o mistério, Petreanu, juntamente com Tiago Marques e Julia Nguyen, ambos primeiros autores do estudo, utilizaram um método único, desenvolvido há uns anos por Petreanu. Graças a este método, os cientistas conseguiram medir a atividade nos pontos de contacto entre neurónios das estruturas superiores e inferiores.
“Este método permitiu-nos perceber de forma totalmente inédita a organização das ligações de feedback e deu-nos pistas sobre a forma como essa organização poderá contribuir para a perceção visual”, diz Marques. “Encontrámos uma belíssima organização escondida no emaranhado de fios, em que as ligações de feedback se projetam para neurónios específicos em função dos sinais que transportam.”
Mas qual é exatamente esta organização? E qual poderá ser o seu papel na perceção visual? Petreanu e Marques descobriram algumas pistas que sugerem respostas para este mistério de longa data.
Ligações de feedback fornecem uma visão global
A primeira pista surgiu quando os investigadores se perguntaram se as ligações tinham um padrão específico. Suspeitavam que tinham.
“Em muitas estruturas distintas do sistema visual, começando pelo próprio olho, os neurónios vizinhos codificam áreas vizinhas do espaço visual. Assim, estas estruturas individuais contêm um mapa quase ‘ponto por ponto’ da imagem”, explica Marques.
Este mapa existe no córtex visual primário (também chamado V1), que é o ponto de entrada da informação visual no neocórtex. E foi com a pergunta: será que as ligações de feedback coincidem com o mapa visual codificado no V1? que os cientistas começaram esta aventura.
“A resposta foi que sim e não…”, diz Marques. “A maioria dos sinais vindos das ligações de feedback formam o mesmo mapa espacial que as áreas de V1 às quais estão ligadas. Por outras palavras o mapa de V1 e o mapa de feedback sobrepõem-se. Esta observação, que já havia sido reportada noutras espécies, tais como os primatas, não foi uma surpresa.”
“No ratinho, porém, observámos algo de novo”, salienta Marques. “As ligações de feedback também codificavam informações vindas de outros locais do espaço visual. Dado que a técnica que utilizámos é inédita e apenas foi aplicada aqui, é provável que esta propriedade também se encontre noutras espécies.”
Este resultado sugere que os sinais de feedback enviados pelas áreas corticais superiores são utilizados para fornecer contexto às estruturas inferiores. “Segundo a estrutura hierárquica do sistema visual, as estruturas inferiores só teriam acesso a informações locais, de baixo nível”, explica Marques. “O que as ligações de feedback lhes fornecem é a ‘visão global’. Desta forma, a actividade dos neurónios das estruturas inferiores pode ser alterada em função do contexto.”
“Este tipo de contextualização é muito importante para a percepção visual. Por exemplo, um círculo verde visto à distância será facilmente identificado como uma bola de ténis num corte de ténis ou uma maçã numa fruteira”, acrescenta.
Dizer ao cérebro para onde não olhar
A primeira descoberta levou os cientistas a olhar ainda mais de perto para outros tipos de informação que as ligações de feedback poderiam enviar ao V1. Desta vez, quiseram saber se estas ligações estariam a ajudar os neurónios do V1 a localizar objetos.
“O mundo é feito de objetos”, explica Petreanu. “O telefone na nossa mão, os carros na estrada, são todos objetos definidos por linhas contínuas. Portanto, não é surpreendente que os neurónios do sistema visual atribuam uma grande importância a essas linhas.”
Como poderiam as ligações de feedback ajudar a acentuar as linhas de contorno dos objetos? Duas possibilidades: amplificando a atividade dos neurónios do V1 onde as linhas estão localizadas – ou silenciando a atividade dos neurónios onde as linhas não são supostas estar.
“Descobrimos que a segunda opção é a mais provável”, diz Petreanu. “As ligações de feedback eram abundantes em áreas do V1 situadas fora das linhas. A nossa hipótese é, portanto, que esta organização serve para silenciar os neurónios nas áreas fora das linhas de contorno dos objetos, acentuando assim o contraste entre os objetos e o que os rodeia.”
A seguir, os cientistas perguntaram se as ligações de feedback estariam a participar na detecção de movimentos. E ficaram surpreendidos ao constatar que não só o fazem, como usam a mesma estratégia para o fazer. “Desta vez, a computação visual era diferente, mas as ligações de feedback desempenhavam o mesmo papel”, diz Marques. “O que observámos foi que as ligações de feedback que respondem aos objetos em movimento eram mais abundantes em regiões do V1 situadas no sentido oposto ao do movimento.”
No seu conjunto, estes resultados sugerem que estas ligações de feedback actuam como uma espécie de clarividência. Mas como é que os neurónios se organizam desta forma?
“Pensamos que as ligações de feedback aprendem, com base na experiência, o que esperar do mundo exterior e a seguir utilizam esse conhecimento para moldar a informação visual”, diz Petreanu. “No mundo exterior, os objetos são definidos por linhas contínuas e não por pontos isolados, e os objetos em movimento têm tendência a manter a sua trajetória e não a movimentar-se ao acaso. Portanto, as ligações de feedback tentam em particular acentuar as características que aprenderam a antecipar. E surpreendentemente, fazem-no apontando para os sítios opostos aos sítios antecipados.”
Da visão biológica à visão artificial
Os resultados de Petreanu e Marques acrescentam uma peça importante ao puzzle da organização do neocórtex e sugerem como a perceção visual poderá ser gerada no cérebro. Segundo Petreanu, estas descobertas não só contribuem para a nossa compreensão da biologia, mas também poderão ter implicações na área da visão artificial (machine vision).
“A relação entre a visão artificial e a neurociência foi sempre próxima”, diz Petreanu. “O conhecimento da organização dos circuitos cerebrais, e em especial do neocórtex, tem inspirado algoritmos cada vez melhores em tornar as máquinas capazes de ‘ver’”.
Mas segundo Petreanu, embora os algoritmos atuais de visão artificial sejam bastante bons, ainda não conseguem igualar o desempenho humano. “Os algoritmos modernos de visão artificial não costumam incluir ligações de feedback. Os nossos resultados poderão inspirar novos algoritmos, capazes de tirar partido destas ligações, o que poderá fazer com que o futuro chegue um pouco mais depressa”, conclui.
Legenda da imagem:
A existência de ligações neurais "retrógradas" entre áreas distantes do neocortex -- a parte do cérebro responsável pelas funções cognitivas superiores -- tem desconcertado os especialistas durante décadas. Crédito: Marques et al.
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