«Estudo o texto bíblico no seu contexto histórico e arqueológico»
Por: GPS / Fundação Francisco Manuel dos Santos
Entrevista a Francisco Martins, doutorando em estudos bíblicos na Universidade Hebraica de Jerusalém, em Israel.
«A maioria dos livros do que comumente se chama o Antigo Testamento foi escrita em hebraico, uma língua com quase 3000 anos de história, e é um privilégio e um estímulo enorme poder falá-la no dia-a-dia e, por isso, apreciar no original estes textos com mais de 2000-2500 anos.»
Entrevista:
Pode descrever de forma sucinta (para nós, leigos) o que faz profissionalmente?
Eu sou bolseiro da FCT e faço trabalho de investigação na área das Línguas e Culturas antigas. Mais concretamente, estudo o texto bíblico no seu contexto histórico e arqueológico. E, para isso, não há nada melhor do que estar em Jerusalém, e estudar na Universidade Hebraica. A maioria dos livros do que comumente se chama o Antigo Testamento foi escrita em hebraico, uma língua com quase 3000 anos de história, e é um privilégio e um estímulo enorme poder falá-la no dia-a-dia e, por isso, apreciar no original estes textos com mais de 2000-2500 anos. É um bocadinho como ser um aluno de Erasmus, digamos, da Suécia, e vir para Portugal, aprender a nossa língua e poder ler Os Lusíadas de Camões ou os poemas de Fernando Pessoa no original e escrever uma tese de doutoramento sobre isso.
Além disso, estando em Jerusalém, posso facilmente deslocar-me aos sítios arqueológicos que nos ajudaram a compreender melhor algumas das histórias que povoam o imaginário da cultura ocidental. Toda a gente já ouviu falar dos reis David e Salomão, mas poucos saberão que, hoje em dia, os arqueólogos debatem animadamente se o primeiro teria sido mais do que uma espécie de pequeno chefe tribal e se o palácio do segundo teria sido pouco mais que uma caserna…
Agora pedimos-lhe que tente contagiar-nos: o que há de particularmente entusiasmante na sua área de trabalho?
O que mais me fascina na literatura, em geral, e na literatura antiga pré-clássica, em particular, é a capacidade humana de contar histórias, de inventar épicos, de se imaginar sempre de novo. E o mais impressionante é quando isso é posto ao serviço da luta por dar sentido ao que somos e fazemos, sobretudo em momentos de crise. Por exemplo, no caso do Israel Antigo, a pior das desgraças nacionais foi o exílio de Babilónia. E é precisamente desta crise sem precedentes que nascem algumas das melhores histórias de Bíblia, porque era preciso “agarrar o futuro” e sonhar uma nova forma de vida, num país estrangeiro ou entre os escombros de Jerusalém.
A nós, que somos filhos da sociedade da eficácia científica e tecnológica, isto tudo pode parecer-nos um bocadinho estranho, e até patético: quem é que precisa de histórias, quando ainda falta reconstruir a capital que foi arrasada? Mas, há aqui, nestes textos antigos, uma sabedoria que, se calhar, perdemos: a de dar conta – é isso que significa “contar” – do que nos aconteceu e do que não queremos perder, aquelas coisas que nos permitem olhar o mundo e os outros de frente.
Por que motivos decidiu fazer períodos de investigação no estrangeiro e o que encontrou de inesperado nessa realidade académica?
Como membro de uma ordem religiosa internacional, os jesuítas, resido há já vários anos no estrangeiro e fui aluno, e depois investigador, em universidades em Espanha, França e agora Israel. Num certo sentido, o mundo tornou-se a minha casa e a experiência de entrar em distintos universos académicos em diversos países já é uma espécie de “segunda pele”.
Dito isto, há sempre coisas novas, que nos surpreendem. Em Israel, na Universidade Hebraica, o que mais se surpreende é aquilo a que eu chamaria a “cultura da pergunta”. Assisti a uma ou outra aula e fiquei fascinado com a atitude dos alunos, a sua energia, a sua vontade de questionar tudo, de levantar hipóteses, de expressar a sua opinião. E esta cultura caracteriza toda a vida da Academia: a investigação, mesmo em Humanidades, é um “vai-e-vem” constante de pergunta e resposta, de interacção e debate, de confronto de ideias com outros colegas, com professores. Há aqui uma “energia académica” que é contagiante e, ao mesmo tempo, muito exigente, porque cada afirmação, cada opinião, cada hipótese é escrutinada, sem quaisquer pruridos.
Que apreciação faz do panorama científico português, tanto na sua área como de uma forma mais geral?
É-me difícil falar do panorama científico português, porque nos últimos anos tenho tido menos contacto com o meio académico do nosso país. Tenho, no entanto, a percepção de que Portugal tem dado passos significativos também neste âmbito, com o aumento do número de bolsas ou a promoção da mobilidade internacional dos investigadores portugueses. Além disso, e isto nunca é demais dizê-lo, a minha experiência na Europa e agora em Israel tem-me convencido de que a qualidade da formação universitária ministrada em Portugal não é suficientemente reconhecida: os alunos, sobretudo os bons alunos, saem, em geral, bem preparados para enfrentar o exigente mundo da investigação científica.
A minha área, Línguas e Culturas Pré-Clássicas e Estudos Bíblicos, não é e não tem sido, nos últimos tempos, uma prioridade do nosso país. E sente-se esse desinvestimento. Mas, também há sinais de esperança, como a criação, em 2012, da Associação Bíblica Portuguesa (ABP), ou o importantíssimo projecto arqueológico no qual a Universidade Nova de Lisboa está envolvida: uma nova época de escavações naquela que foi a capital do reino do Israel durante a Idade do Ferro, Tirzah. São dois exemplos, entre outros, de uma nova audácia que é preciso saudar e apoiar.
Que ferramentas do GPS lhe parecem particularmente interessantes, e porquê?
Aderi ao GPS há mais de um ano e fi-lo por estar convencido da importância de uma ferramenta deste género. É preciso pôr os investigadores portugueses no mapa, literalmente, para “abrir a porta” a contactos, a sinergias, e, quem sabe, a futuras parcerias. A Fundação Francisco Manuel dos Santos está seguramente de parabéns e acredito que este é um serviço importante ao nosso país. A mim, pessoalmente, ajuda-me a ter percepção desta imensa diáspora científica portuguesa e, por isso, a valorizar o nosso envolvimento, como povo, no progresso da ciência. E isso enche-me de orgulho!
Consulte o perfil de Francisco Martins no site Academia.edu.
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