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Onde se cheiram as cores?

06 Dez 2011 - 12h26 - caracteres

Sentir com o coração é muito mais difícil, mas porventura muito mais comum, do que cheirar o vermelho, foi a conclusão a que cheguei no final deste texto.

Apesar de muito cansado, esta frase não atesta que eu possa ter perdido definitivamente o tino.

A máxima com que iniciei este texto pode servir de introdução à sinestesia. Não, não voltei a entrar pelos meandros da irracionalidade.

A sinestesia é uma condição neurológica na qual uma pessoa é estimulada sensorialmente sendo duas respostas sensoriais desencadeadas. Um sinestésico sente a forma de um cheiro ou o sabor de um som, por exemplo. Desta forma, as experiências sinestésicas podem conter várias respostas a um mesmo estímulo. Esta condição neurológica, apesar de rara, pode afectar até cerca de 4% da população, existindo diversas variantes.

A primeira vez que me deparei com esta característica neurológica foi com a minha cara-metade, andava ela a tactear a poesia de Fernando Echevarría, poesia que, segundo ela, tem como uma das pedras angulares a sinestesia – grita-me agora ela do outro lado da sala “Isso era a minha tese!”.

Deixemos as teses alheias e voltemos à sinestesia de Echevarría.

 

É a noite dos rios. Arrefece

Ter a longa pupila sombreada.

E as mãos velhas de ter sido verde

Ver-se passar a noite pela água.

(…)

 

O jornal i, de data incerta, proporcionou-me o segundo contacto com a sinestesia. Nele se relatavam as experiências ocorridas nas gravações de Jimmy Hendrix. Algures, contava o produtor, o guitarrista gritava-lhe algo como: “Preciso de mais verde aí…” ou “Isto estava perfeito se tivesse mais roxo…”, dizia Hendrix sobre partes das gravações. Poderão os conservadores afirmar que o verde que Hendrix pedia era uma consequência das doses cavalares de LSD que o virtuoso das cordas consumia. Pode ser; mas não deixa de ser sinestesia.

 

Apesar de vastamente descrita, a sinestesia ainda não é totalmente compreendida. É uma condição rara, afectando de maneiras distintas os sinestésicos. Uma das formas mais comuns é designada de sinestesia grafema-cor em que existe uma associação de cores a números ou a letras. Exemplos deste tipo de sinestesia podem ser compreendidos pela leitura do livro “Nascido num dia Azul” de Daniel Tammet, igualmente portador de síndrome de Savant. Tammet é capaz de indicar 22514 dígitos de Pi, graças à sua associação de números a cores. Uma prática semelhante, ao nível do cálculos matemáticos, é referida pelo famoso físico Richard Feynman.

De que cor é o se7e mesmo?

Para além da associação números/letras a cores, existem vários outros tipos de sinestesia, entre os quais:

-som-cor;

-palavra-sabor;

-sabor-toque;

-espelho-toque – o sinestésico sente o toque quando vê outra pessoa a ser tocada.

Uma verdadeira confusão de sensações mesmo depois da adolescência…

Embora a componente hereditária da sinestesia não esteja totalmente explicada, foram identificadas famílias com maior percentagem desta condição. A investigação científica tem vindo gradualmente a apontar para que poderá ainda existir uma ligação da sinestesia ao cromossoma X, dado que a proporção de mulheres vs. homens nesta condição neurológica é de 6 para 1. Alguns autores referem que a resiliência evolutiva deste gene, ou genes, poderá estar associada a processos criativos, entre os quais os de memória. Argumenta-se que as experiência sinestésicas poderão ter contribuído evolutivamente para que a retenção de informação sensorial se desse mais efectivamente. Se virmos e cheirarmos sincronicamente o mundo talvez sobrevivamos melhor, acrescento eu.

Certo é que ainda permanecem muitas questões em aberto sobre a sinestesia.

 

Não posso mais. Caem lentas

e maduras como horas

de lágrimas. Não sustentas

robustas pedras sonoras.

Um coração ao compasso

de cada fruto maduro,

que rebenta quanto apuro

no silêncio do que faço.

Um coração passo a passo

do coração prematuro.


© 2011 - Ciência na Imprensa Regional / Ciência Viva


Luís Azevedo Rodrigues

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