A noite do tempo?
Em face da consideração histórica da mulher como fêmea, exposta brutalmente na sua abertura primordial, toda pele sensibilizada, sem acesso directo, e de direito, à razão, à alma, à palavra, delineiam-se as reivindicações actuais do seu corpo pela própria. Afinal, reclama-se um corpo ressonante, habitado, que se demarque da natureza em que sempre se implantou, e onde os homens supostamente desempenharam o papel de predadores. O assalto mais doloroso terá sido o que fizeram ao “útero”, de onde provém o qualificativo das mulheres enquanto histéricas (do grego histeresia, referente ao útero). Ora, como refere Helena Neves, professora na Universidade Lusófona, “é por este órgão que a mulher é um imbecilitas sexus, repetirá S. Tomás, ou no mais caridoso discurso filosófico e médico dos iluministas, um animal doente.” E, afinal, é o órgão onde se aloja o feto durante a gestação: toda a mulher, todo o homem, enceta morada nele.
Dizem-nos Isabel do Carmo e Lígia Amâncio: “Como se sabe até certa altura as mulheres não tinham alma … Mas o mais curioso é que além de não terem alma também não tinham esqueleto! Só depois da revolução francesa foi representado pela primeira vez num livro de anatomia o esqueleto feminino, que como se calcula, é diferente do esqueleto do homem. Possivelmente até aí não tinha diferença, tinha defeito…”
Mas…o esqueleto que se recusou à sustentação do feminino revelará alguma coisa efectiva? Porque no momento em que se desenhava o esqueleto feminino, Olympe de Gouges, criadora da Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã no alvor da Época Contemporânea, subiria à forca, e proibir-se-iam as mulheres de desempenharem actividades políticas. Deste modo, é verdade que as mulheres perdem a voz, mas os homens também perdem qualquer coisa: os ouvidos. Têm voz, os homens? Seguindo uma via corporativa, têm: mas ventríloqua. Assim, para que a sociedade não derive num diálogo de mudas e surdos, convém mesmo questionar a herança moderna de várias realidades, entre elas: autonomia e liberdade. Uma visão-outra torna-se imperiosa, ou seja: a imagem em que se reclama a voz para as mulheres tem de ter também os homens, no caso, à procura dos seus ouvidos.
A voz funciona aqui como análogo da expressão; já os ouvidos prefiguram uma disposição. Podemos por isso afirmar que estamos em face talvez das duas heranças mais retumbantes no Ocidente: a greco-romana, com a racionalidade da palavra, e a judaico-cristã, com a revelação pela escuta. Ora, sabemos que Platão, no célebre O Banquete, coloca Sócrates a enobrecer o parto das ideias, ofuscando, portanto, a “génese criativa” feminina (Camille Paglia chama-lhe ctónica, com a influência de Jane Harrison), ou seja: a gestação efectiva de humanos; por esta via, então, a palavra separar-se-á magistralmente do corpo, flutuando como uma espécie de pária sobre o feminino. Sabemos também que a maternidade é o calcanhar de Aquiles de uma concepção do feminismo contemporâneo; não nos enganemos: parte do caminho calcorreado é-o no sentido da oclusão dessa potência inscrita quase como um “bruxedo” no corpo das mulheres.
Já no que concerne à tradição judaico-cristã, relembre-se o seguinte selo: “o verbo fez-se carne e habitou entre nós”. Por aqui, vemos que a “palavra” sela a existência informe dos humanos, tal como disso precisamente dá conta María Zambrano. Se costurarmos as duas vias, rapidamente se perfila a necessidade de encontrar uma economia discursiva que seja fiel à experiência da vida; digo “economia” no sentido que lhe dá Julia Kristeva, ou seja, uma travessia, cujo risco está pressuposto. Pois será exactamente isso que é necessário des-bravar: uma economia discursiva que não replique o “manto de palavras” que se abateu sobre a experiência, como o bem afirma José Bragança de Miranda; uma economia discursiva, singular sim, mas também transcendental. E transcendental na medida em que mantém o lugar certo para a mulher e para o homem, sem perigar no essencialismo: apenas o caminho da transcendência permitirá, e sintomaticamente inserido na trama do tempo, evitar o “espírito de corpo”, ou corporativismo, que ameaça, sempre ameaçará, a liberdade, mesmo se a violência lança a sua noite sem estrelas sobre a claridade de uma manhã redentora.
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Cláudia Ferreira
Cláudia Ferreira é natural de Coimbra. Licenciada em História/var. História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tendo frequentado Estética e Filosofia da Arte na FLUCL, em Lisboa, sendo nessa mesma cidade que viria a concluir o mestrado em Estudos sobre a Mulher – As Mulheres na Sociedade e na Cultura, concretamente, na FCSH da Universidade Nova de Lisboa, para, em 2019, obter o doutoramento em Estudos Contemporâneos na Universidade de Coimbra com a tese intitulada O Rosto das Horas: do feminino e do masculino, com a arte. É investigadora do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX – CEIS20 e desempenha as funções de Técnica Superior na Câmara Municipal de Condeixa.
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