Ocupação humana na Sibéria nos últimos 31 mil anos
Sabe-se que o nordeste da Sibéria é habitado por humanos há mais de 40 mil anos. Os registos arqueológicos já descobertos deixavam antever a complexidade da história da ocupação humana desta região – um dos ambientes mais remotos e extremos a ser ocupado por humanos - mas a escassez destes registos não permitia ainda tirar conclusões sobre qual terá sido a dinâmica destas populações.
Os resultados do estudo agora publicado na revista Nature (https://doi.org/10.1038/s41586-019-1279-z) – o primeiro a analisar e comparar 34 genomas antigos oriundos de restos mortais humanos encontrados em diferentes locais da Sibéria, desde há 31 000 anos até à atualidade – revelam que a história da ocupação humana da região envolveu no mínimo três migrações e subsequentes substituições em grande escala.
“A nossa hipótese inicial era de que as populações atuais da Sibéria descendiam dos humanos que se sabia terem vivido há cerca de 30 mil anos na Sibéria. Mas os genomas que analisámos ao longo da linha temporal desde esse passado remoto até hoje mostram grandes diferenças entre si – e contrariam essa hipótese. Por exemplo, as amostras com cerca de 30 mil anos são mais semelhantes às de indivíduos que vivem atualmente no oeste da Europa do que às de indivíduos das populações atuais da Sibéria”, explica Vítor Sousa, um dos autores deste artigo e investigador do Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais – cE3c, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
Entre os genomas antigos analisados estão os genomas extraídos de dois dentes de leite, que correspondem aos mais antigos restos mortais humanos encontrados até hoje na região, com cerca de 31 mil anos. Foram encontrados num grande local arqueológico na Sibéria, perto do Rio Yana. O local, conhecido como Yana Rhinoceros Horn Site – Yana RHS – foi encontrado em 2001 e possui mais de 2500 artefactos de ossos de animais e marfim, juntamente com ferramentas de pedra e evidências de habitação humana.
Este estudo também revela que um dos genomas analisados, correspondente aos restos mortais de um homem com 10 mil anos, encontrados num local próximo do rio Kolyma, na Sibéria, estão geneticamente relacionados com os indígenas americanos. Já se sabia que os humanos chegaram primeiro às Américas a partir da Sibéria até ao Alasca, através de uma ponte de terra que atravessava o estreito de Bering, submersa no final da última Era Glacial. Mas trata-se da primeira vez que tais ligações genéticas tão estreitas são descobertas fora dos Estados Unidos da América, representando uma peça-chave para a compreensão da genética dos ancestrais dos americanos nativos.
“As nossas estimativas mostram que há 31 mil anos a Sibéria era ocupada por uma população ancestral que chegou a estar distribuída por uma grande área, representada pelos genomas obtidos a partir dos dois dentes de leite encontrados perto do Rio Yana. Essa população depois desapareceu – foi quase totalmente substituída por uma população mais semelhante aos asiáticos, que colonizou a Sibéria há entre 15 e 29 mil anos, representada pela amostra do crânio do Rio Kolyma com cerca de 10 mil anos. Esta população é muito importante porque é a mais semelhante a todos os nativos americanos actuais. No entanto, na Sibéria, essa população também foi substituída numa terceira vaga migratória por populações do sudeste asiático, há entre 10 e 18 mil anos, ancestrais directas das populações actuais. Note-se que as vagas migratórias foram acompanhadas por trocas genéticas entre populações, por exemplo, a amostra de Kolyma tem entre 7% a 22% de Yana”, explica o investigador.
“Compreender a história da ocupação humana da Sibéria é muito importante para compreender a história da humanidade como um todo. Por um lado, porque se trata de uma região com um clima extremo e inóspito – o que nos ajuda a perceber como as alterações climáticas ao longo dos últimos milhares de anos afetaram as populações humanas. Por outro lado, por se tratar de uma região que esteve ligada à América por uma passagem de terra, pelo atual estreito de Bering, é crucial para compreender a colonização humana das Américas. Os nossos resultados mostram que a análise do ADN antigo consegue resolver muitas questões sobre a relação entre as populações actuais, e mostra que populações que se extinguiram podem ter deixado um legado genético importante”, explica Vítor Sousa, um dos investigadores que trabalhou nas análises genéticas deste estudo internacional, coordenado por Eske Willerslev, investigador da Universidade de Copenhaga (Dinamarca) e da Universidade de Cambridge (Reino Unido).
A par das análises genéticas, os investigadores desenvolveram também modelos climáticos para compreender como o clima evoluiu na região ao longo dos últimos milhares de anos. Embora não seja possível afirmar com certeza quais os fatores que determinaram o desaparecimento destas populações e subsequente substituição por outras populações durante vagas migratórias, os resultados da modelação climática sugerem que períodos de acentuado arrefecimento e de clima inóspito durante as últimas glaciações poderão estar relacionados com o seu desaparecimento.
As várias migrações que se verificaram no nordeste da Sibéria ao longo dos últimos 30 mil anos revelam que estas várias populações geraram a diversidade genética dos humanos contemporâneos que habitam uma vasta área da Eurásia e das Américas, representando uma parte significativa da história da humanidade. “Esta descoberta muda muito do que pensávamos saber sobre a história da população do nordeste da Sibéria, mas também sobre aquilo que sabemos sobre a história da migração humana como um todo”, afirma Martin Sikora, investigador do Lundbeck Foundation Centre for GeoGenetics (Dinamarca) e co-autor do estudo.
Referência do artigo:
Sikora M. et al. (2019) The population history of northeastern Siberia since the Pleistocene. Nature. Disponível aqui: https://doi.org/10.1038/s41586-019-1279-z
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