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As obras de arte: duplos de viver

19 Ago 2019 - 15h34 - 4.273 caracteres

Platão fez recair sobre a arte a sombra da dúvida, ao considerá-la cópia ostensiva e deteriorada da realidade; e esta, por sua vez, teria a configuração pálida das ideias.

 

Existe uma tendência anti-platónica nos dias em que vivemos, que vai a par daquilo a que Peter Sloterdijk chama o “assassínio da metafísica”; longe de ser uma questão “meramente” filosófica ela implica, ao invés, o modo como pensamos o humano e o mundo. Ou seja, não é a mesma coisa conceber que existe um além-mundo sem fissuras, por um lado, e, por outro, pensar que o destino do humano se cumpre no mundo/Terra, e em vida. A metafísica enquanto herança filosófica fez recair sobre o sistema a responsabilidade pelo desenho de uma espécie de curvatura totalitária que repudia a facticidade humana na sua singularidade, e desamparo. O que interessará reflectir, agora, é na forma de tal facticidade humana que se espraia, inevitavelmente, no mundo/Terra. Tal reflexão enriquece-se exponencialmente se for feita na companhia da arte.

Luce Irigaray, por exemplo, adverte que a capacidade de maravilhamento provocada pelas obras de arte é raramente transposta para outros planos da vida, enfatizando nestes as relações entre homens e mulheres. Ou seja, numa sociedade instrumentalizada e funcional como a actual, para a qual Friedrich Nietzsche franqueou a entrada ao desenhar-lhe o pórtico da morte de Deus, parece de facto dificilmente acessível o maravilhoso país da evasão. Sim, porque estar no mundo é-o pelo corpo, é-o pela pátria, mas é-o também pela evasão que nele se configura, na firme convicção de Emmanuel Levinas. E o que é a evasão? Não é estado de alienação, na senda dos pensamentos de Gilles Lipovetsky ou de Jean Baudrillard que alertam, e bem, para o consumo desregrado e induzido, bem como para a aceleração patológica. Evasão significa que, além do corpo, além da pátria, cada pessoa se cumpre igualmente pelos livros em que submerge ou pelas obras de arte em que penetra. Cristina Campo, por exemplo, afirmou que existe um Deus que protege das más leituras; haverá outro que protege das más obras de arte.

Neste contexto, e acreditando, com Mikel Dufrenne, que as obras de arte são quase-sujeitos, bem como que quem frui a arte deve de alguma forma despossuir-se, o mesmo é dizer, praticar uma relativa suspensão de si, abrindo-se à experiência, a pessoa não regressa igual a si mesma, mas transformada. Assim, as obras de arte não são uma questão de “gabinetes”, e todas as tentativas para as encerrar neles serão obscenas, mas antes duplos de viver que se enxertam no quotidiano. A expressão “duplo”, como se começou por dizer, tem o selo da realidade deteriorada que lhe colocou Platão; mas se reflectirmos em termos de energia libidinal, como o faz João Barrento, por exemplo, veremos que o duplo não é cópia, não é desdobramento, mas sim alegria de viver. Então, é como se a vida se intensificasse através da arte, que nos oferece imagens exemplares, que não são exemplos, admiráveis e que, longe de alienarem do mundo/Terra, abrem a e à experiência.

O assassínio da metafísica de que fala Peter Sloterdijk explana bem que o conhecimento filosófico deverá incorporar-se no quotidiano, logo, deixa de ser o sistema que sonda a vida para melhor lhe traçar os sintomas da morte, e é antes móbil de movimento e acção. Nestes termos, não tenhamos dúvidas: a filosofia ligar-se-á indelevelmente à história. Que as obras de arte se liguem indelevelmente à vida será inevitável: como duplos de viver.

 

Cláudia Ferreira


© 2019 - Ciência na Imprensa Regional / Ciência Viva


Cláudia Ferreira

Cláudia Ferreira é natural de Coimbra. Licenciada em História/var. História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tendo frequentado Estética e Filosofia da Arte na FLUCL, em Lisboa, sendo nessa mesma cidade que viria a concluir o mestrado em Estudos sobre a Mulher – As Mulheres na Sociedade e na Cultura, concretamente, na FCSH da Universidade Nova de Lisboa, para, em 2019, obter o doutoramento em Estudos Contemporâneos na Universidade de Coimbra com a tese intitulada O Rosto das Horas: do feminino e do masculino, com a arte. É investigadora do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX – CEIS20 e desempenha as funções de Técnica Superior na Câmara Municipal de Condeixa.


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