Espreitar para dentro da caixa negra da Inteligência Artificial
Por: Fundação Champalimaud
Durante décadas, os especialistas que procuram explicar a emergência de comportamentos de grupo complexos, tais como como a formação de cardumes de peixes, têm-se dividido em dois campos de investigação. Agora, graças a um inédito modelo de inteligência artificial que estabelece uma ponte entre os dois pontos de vista, esta divisão poderá ter os dias contados.
Como é possível que surja, nos grupos de peixes, a formação de cardumes com padrões de organização tão intricadamente complexos? Para muitos cientistas, esta questão constitui um enigma matemático irresistível, envolvendo uma quantidade substancial de variáveis que descrevem a velocidade relativa e a posição de cada peixe e dos seus inúmeros vizinhos.
Diversos modelos matemáticos têm sido propostos para lidar com esta questão, mas segundo Gonzalo de Polavieja, que lidera o laboratório de Comportamento Coletivo no Centro Champalimaud, em Lisboa, Portugal, os modelos caíam inevitavelmente num de dois extremos: ou eram muito simples, ou muito complexos.
“Os avanços da inteligência artificial (IA) e da aprendizagem automática têm permitido elaborar modelos muito precisos em termos da previsão do comportamento dos indivíduos dentro de um grupo”, diz de Polavieja. “Porém, estes modelos são como caixas negras: a maneira como processam os dados para gerar as suas previsões pode chegar a incluir milhares de parâmetros, muitos dos quais talvez nem correspondam a variáveis do mundo real. Nós humanos somos incapazes de descobrir o sentido que se esconde nesta informação tão complexa.”
“No outro extremo”, prossegue, “temos modelos mais simples, com poucos parâmetros, que nos permitem identificar regras associadas a um componente principal, tal como a distância entre os peixes ou a sua velocidade relativa. Mas estes modelos são demasiado limitados quando se trata de prever o comportamento global do grupo.”
Inspirando-se num novo tipo de modelo de IA chamado “rede de atenção”, Polavieja e a sua equipa conseguiram identificar uma solução intermédia: um modelo que ao mesmo tempo dá pistas para perceber o que se passa e é capaz de fazer previsões. Os investigadores descrevem os seus resultados num artigo publicado na revista Plos Computational Biology (https://journals.plos.org/ploscompbiol/article?id=10.1371/journal.pcbi.1007354).
Desconstruir a caixa negra
Para resolver o problema, a equipa decidiu utilizar técnicas de IA ligeiramente modificadas, onde, em vez de construir a “caixa negra” intacta do costume, organizaram o modelo num grande número de módulos interligados, cada um dos quais simples o suficiente para poder ser analisado (por humanos).
Quando os cientistas estudaram as funções geradas por cada módulo, descobriram que as regras toscas que já conheciam ainda eram válidas, mas que estas tinham ficado agora muito mais apuradas. “Por exemplo, segundo os modelos anteriores, o espaço à volta de cada peixe está dividido em três áreas circulares concêntricas: a da repulsão, a do alinhamento e a da atração. Desta vez, também encontrámos as mesmas áreas, mas ao contrário dos modelos simples que tinham inicialmente permitido identificá-las, o nosso modelo mostra que essas áreas não são circulares nem concêntricas, e que se alteram conforme a velocidade do peixe”, explica Francisco Heras, o primeiro autor do estudo.
Para além das pistas que permite obter, o modelo também é bom a prever o comportamento dos peixes. “Podemos prever com 90% de precisão se um dado peixe vai virar para a direita ou para a esquerda no segundo que se segue”, diz Heras. “Isto pode não parecer um tempo muito longo à escala dos movimentos humanos, mas os peixes-zebra vivem num ambiente onde tudo anda mais depressa – e podem cobrir uma distância equivalente a cerca de oito vezes o comprimento do seu corpo em apenas um segundo.”
Os resultados do modelo são extremamente robustos, o que permite perguntar porque é que esta abordagem não foi utilizada mais cedo. Segundo de Polavieja, a resposta tem “um pouco de sociologia e um pouco de matemática”. Como explica este investigador, “uma vez que ambas as abordagens que dominavam a especialidade eram tão diferentes uma da outra, demorou algum tempo até se perceber que a construção de um modelo ao mesmo tempo informativo e bom na previsão fosse sequer possível.” Mas mal a equipa se apercebeu desta possibilidade, começou a explorar diferentes arquiteturas e a afinar o seu conjunto de hipóteses de base de forma a otimizar a capacidade de previsão do modelo e ao mesmo tempo mantê-lo suficientemente simples para ele ser informativo e fornecer pistas sobre a biologia do comportamento coletivo em causa.
Um outro elemento que possibilitou este avanço foi o sofisticado software de código-fonte aberto que o laboratório desenvolveu recentemente e que permite seguir o movimento de cada peixe individual num grupo. “Utilizando o idtracker.ai, fomos capazes de seguir em simultâneo cada peixe de um grupo de 100. Isto foi crucial para obter o grande conjunto de dados que são precisos neste tipo de pesquisas.”
A equipa já tornou o código-fonte do seu novo modelo gratuitamente disponível online. Segundo de Polavieja, este poderá representar uma ferramenta útil para a comunidade científica que se dedica ao estudo dos comportamentos coletivos, e que dispõe agora de uma maneira de recuperar as regras de interação de forma automática, de fazer previsões de qualidade e de obter pistas do ponto de vista biológico. “Esperamos que o nosso modelo seja utilizado por outros para estudarem os mais diversos tipos de interações sociais”, conclui.
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