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A propósito do coronavírus, o que são os vírus?

22 Jan 2020 - 16h22 - 9.807 caracteres

No geral podemos definir um vírus como um agente infeccioso de dimensões submicroscópicas (isto é, mil vezes mais pequenos do que um milímetro) constituído por uma “cápsula” de alguns tipos de proteínas que se encaixam umas nas outras, quais pedras numa calçada portuguesa, numa estrutura regular que lhes confere resistência, a qual guarda e protege o genoma viral. O genoma, livro de instruções que definem, de certa forma, a história e o ciclo de vida do vírus, pode ser composto por ADN (exemplo, os adenovírus) ou ARN (exemplos são o HIV – vírus da SIDA, ou o influenza A sub-tipo H1N1 – vírus da gripe e os actualmente preocupantes coronavírus), mas nunca por ambos. Alguns vírus, de que o HIV é um exemplo, possuem uma bainha de lípidos à volta da cápsula proteica.

Como se sugeriu, o material genético que compõe o genoma viral contém todas as informações ou planos para a construção do seu “edifício”, instruções para a sua arquitectura proteica regular. No entanto precisam da “fábrica e maquinaria” bioquímica existente no interior das células vivas, para dar expressão, sentido e função aos seus próprios planos. Isto é assim, porque os vírus são caracterizados por não possuírem um metabolismo independente e por serem incapazes de se replicarem fora de uma determinada célula. Para além disso, vírus diferentes têm capacidade de invadir tipos de células específicos e diversos.

Por exemplo, os vírus que causam hepatite “escolhem” as células do fígado (que se designam hepatócitos e daí advém o nome da doença hepatite – infecção nos hepatócitos), os que causam a SIDA “preferem” um determinado tipo de células brancas do nosso sistema imunitário, enquanto outros como os adenovírus e os coronavírus “alojam-se” nas vias respiratórias dando origem a faringites, pneumonias e outras infecções.

Esta propriedade de os vírus serem capazes de “escolher” um tipo específico de célula é determinada pela existência de algumas proteínas no exterior do vírus que interagem forte e especificamente com moléculas existentes na superfície das células do hospedeiro e que são marcadores “típicos” das células de um determinado tecido. Por exemplo, o vírus influenza A, sub-tipo H1N1, possui no seu mosaico proteico duas proteínas: um tipo de hemaglutinina (H1) e um tipo de neuraminidase (N1). Assim, devido a uma estratégia de reconhecimento molecular forjada e moldada no início da vida no nosso planeta e que evoluiu desde então através de variações do mesmo tema, o vírus “sabe” a que tipo de célula humana deve “atracar-se” para dar início à sua replicação. Isto porque existem na superfície de todas as células, receptores complementares das proteínas que estão na cápsula viral. Uma interacção tipo chave na fechadura complementar, abre a célula à invasão viral.

Assim, uma vez encontrada a célula com a fechadura que a “chave” viral abre, os vírus “injectam” o seu genoma, o seu manual de instruções, no interior celular, ou são primeiramente internalizados integralmente: qual cavalo de Tróia, a célula engole a partícula viral sem ter qualquer desconfiança sobre o que é que lhe vai acontecer.

Uma vez no interior da célula, os genes virais entram em acção, enganando a célula ao dar-lhe novas instruções. Como já se disse, os vírus necessitam da maquinaria bioquímica existente nas nossas células e nas bactérias (sim, também estas padecem com invasões virais). Sem estes processos inerentes e essenciais à vida não é possível “ler” os planos de construção codificados nos genes virais e “traduzi-los” para a forma funcional e estrutural que são as suas proteínas constituintes. Esta tradução é efectuada em unidades de síntese e “montagem” proteica que são os ribossomas. Estes funcionam como “máquinas” de tradução da linguagem genética em proteínas e estão presentes em todas as células. Mas os vírus não possuem ribossomas. Este é um dos aspectos fulcrais para a total dependência dos recursos interiores da célula. Qual atracção “nostálgica” do citoplasma celular, este é destino incontornável no ciclo de replicação viral e fado fatal para a célula hospedeira. Percebemos, assim, porque é que os vírus necessitam das células para se replicarem. Ademais, a célula confere-lhes um ambiente seguro, recheado das matérias-primas e da energia necessária para a sua síntese.

Com o que atrás ficou dito, é mais fácil antever que a infecção de uma célula por um vírus faz com que o metabolismo daquela se desvie muito da sua actividade normal e vital, em direcção à síntese das “peças” necessárias para fabricar novos vírus (nesta etapa designados por viriões). A célula transforma-se assim numa autêntica unidade fabril de produção em série de inúmeras cópias idênticas (clones) do vírus que a infectou. “Obcecada” por esta actividade, a maquinaria celular é impedida de efectuar os processos normais necessários à sua própria manutenção, acabando por entrar em colapso ao fim de algum tempo. Nessa altura, ou porque a célula não é mais capaz de garantir a sua integridade, ou porque o número de viriões por ela sintetizados é muito elevado, ocorre uma ruptura celular e os viriões são libertados para o exterior. Cada um dos novos vírus passa a estar, desta forma, pronto para infectar uma nova célula reiniciando assim o ciclo e o processo infeccioso.

Como os vírus não possuem metabolismo próprio, não é possível utilizar a estratégia intrínseca aos antibióticos que usamos para combater bactérias. Algumas das estratégias da investigação nesta área tentam impedir que os vírus consigam reconhecer a sua célula hospedeira específica e se fixem nela. Outras linhas de investigação dirigem-se para a tentativa de evitar que os vírus dêem ordens de operação à célula para a sua síntese. Outras ainda intrometem-se numa etapa necessária à libertação dos viriões, travando a difusão do programa viral para outras células.

As vacinas actuam de outra forma: instruem o nosso sistema imunitário, “ensinando-o” a reconhecer e a “inactivar” alguns dos vírus que nos visitam. Continua a ser a mais eficaz forma de defesa preventiva que conhecemos. Contudo, alguns vírus sofrem mutações genéticas (alterações no genoma, por exemplo por deriva genética), no decurso da sua replicação, que lhes permite mudar de “aspecto” exterior e escapar à vigilância do nosso sistema imunitário previamente instruído pela vacinação. É como se mudassem de disfarce entre visitas, tornando a sua identificação difícil, e ineficaz a preparação antecipada que a vacinação dá ao nosso próprio sistema de segurança interna contra estes agentes patogénicos.

E em relação aos vírus “novos”, como este Coronavírus 2019-nCoV da nossa actual maior preocupação, antes de ser desenvolvida uma vacina que possa ser administrada para “instruir” o sistema imunitário a reconhecer a sua presença e a combate-lo, não há muitos tratamentos que possam eliminar o vírus, mas sim tratar os sintomas que ele provoca no ser humano.

Aconselho veementemente que não vá em “cantigas” milagrosas difundidas pela ineficaz homeopatia e outras terapias ditas alternativas.

Siga com atenção todas as recomendações da Direcção Geral da Saúde e da Organização Mundial da Saúde. Se apresentar sintomas (febre, dificuldades respiratórias, tosse), antes de se dirigir a uma unidade de sáude, não hesite em ligar imediata e primeiramente para a linha da SNS 24 (808 24 24 24).

 

António Piedade

Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva


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António Piedade

António Piedade é Bioquímico e Comunicador de Ciência. Publicou mais 700 artigos e crónicas de divulgação científica na imprensa portuguesa e 20 artigos em revistas científicas internacionais. É autor de nove livros de divulgação de ciência: "Íris Científica" (Mar da Palavra, 2005 - Plano Nacional de Leitura),"Caminhos de Ciência" com prefácio de Carlos Fiolhais (Imprensa Universidade de Coimbra, 2011), "Silêncio Prodigioso" (Ed. autor, 2012), "Íris Científica 2" (Ed. autor, 2014), "Diálogos com Ciência" (Ed. autor, 2015) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Íris Científica 3" (Ed. autor, 2016), "Íris Científica 4" (Ed. autor, 2017), "Íris Científica 5" (Ed. autor) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Diálogos com Ciência" (Ed. Trinta por um Linha, 2019 - Plano Nacional de Leitura) prefaciado por Carlos Fiolhais. Organiza regularmente ciclos de palestras de divulgação científica, entre os quais, o já muito popular "Ciência às Seis". Profere regularmente palestras de divulgação científica em escolas e outras instituições.


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