Breve Pré-história da Ficção Científica
Por: António Piedade
O termo “ficção científica” surge pela primeira vez nos finais do século XIX. Mas podemos balizar o percurso de uma pré-história da ficção científica como tendo tido início depois do nascimento da ciência experimental moderna. E esta aconteceu com Galileu Galilei (1564-1642) e Johannes Kepler (1571-1630) no início do século XVII.
Se Galileu é reconhecido como figura principal na revolução científica, a Kepler, astrónomo e matemático alemão, devemos as três leis sobre o movimento dos planetas, que recebem o seu nome em sua homenagem e que foram base de partida para a formulação, por Isaac Newton, da lei da actracção universal.
O curioso é que grandes divulgadores da ciência e da cultura humana, como Carl Sagan, identificam num destes gigantes da ciência o autor da primeira obra da pré-história da ficção científica. Como disse o poeta cientista, “eles não sabem nem sonham que o sonho comanda a vida”. E de facto parece ter sido pelo sonho de uma viagem à Lua que a pré-história da ficção científica começou.
O nascimento da ciência experimental moderna e uma incipiente expressão literária que podemos classificar de “ficção científica” conviveram e fertilizaram-se num mesmo tempo e espaço, acto contínuo com o avanço do próprio desenvolvimento científico e tecnológico. Estamos no início do século XVII, na pré-história da ficção científica.
O astrónomo Johannes Kepler matematizou o movimento dos corpos celestes, numa mecânica fundada no modelo heliocêntrico de Copérnico. A revolução científica assenta nas suas três leis dos movimentos dos planetas, que Kepler divulgou e nos legou no seu livro “Harmonices Mundi” (“Harmonia do Mundo”), publicado em 1619.
Paralelamente ao seu papel enquanto um dos fundadores da ciência moderna, a par com Galileu Galilei, Johannes Kepler escreve, entre 1620 e o ano da sua morte (1630), um livro autobiográfico e fantasticamente imaginado: “Somnium” – “O Sonho”. Apenas editado em 1634, quatro anos após a sua morte, com o título completo “Somnium sive opus postumum de astronima lunari” (“O Sonho, obra póstuma sobre astronomia lunar”) esta obra, escrita em latim, é considerada por Carl Sagan e por Isaac Asimov, duas figuras incontornáveis da ciência do século XX e da sua divulgação para todos, como o primeiro livro de ficção científica.
Em “Somnium”, um aluno de Tycho Brahe (muito provavelmente o próprio Kepler) é transportado até à Lua por forças ocultas. Em “Somnium”, o homem olha pela primeira vez na história da humanidade a Terra a partir de uma perspectiva completamente nova. Apresenta uma descrição imaginada e detalhada de como a Terra poderia ser vista a partir da Lua, Kepler faz uma descrição pormenorizada da aclimatação do viajante às condições desoladoras da superfície lunar, projecções que se confirmaram em grande parte pelos astronautas do século XX.
Esta antecipação imaginativa e preditiva de uma realidade que a ciência e a técnica só tornaram possíveis 350 anos depois é uma das características que tornam esta obra pioneira do género, que melhor se estabelecerá definitivamente nos finais do século XIX.
Uma outra obra publicada antes do início da pré-história da ficção científica merece referência neste contexto, apesar de ser considerada um texto filosófico. O seu autor é o inglês Sir Francis Bacon (1561-1626), incontornável teorizador e divulgador do método experimental científico desenvolvido pelos seus contemporâneos Galileu e Kepler.
Num pequeno conto intitulado “A Nova Atlântida”, publicado postumamente em 1627, Bacon relata-nos uma ilha prodigiosa e perdida no meio dos mares, cujos habitantes dominavam as ciências e em consequência possuíam tecnologias muito avançadas. Na ilha funcionam várias máquinas e outros inventos que não existiam no século XVII e que, apesar da sua descrição literária e fantasiosa, são de uma antecipação espantosa.
Mas as viagens à Lua continuaram a ser cenário no palco da pré-história da ficção científica. Na história da literatura mundial é melhor conhecida a descrição da ida à Lua do escritor francês Savinien Cyrano de Bergerac (1619-1655): “Histoire Comique des États et Empires de la Lune” (“História Cómica dos Estados e Impérios da Lua”). Escrita entre 1642 e 1655, publicada postumamente 1657, faz a primeira descrição de uma viagem espacial até à Lua. Já não são forças ocultas, como no caso de Kepler. Materializa-se a viagem em veículo próprio. É relatada também a forma como um povo imaginário e lunar, os Selenitas, vêem os terrestres. Num afastamento telúrico e lunar, Cyrano de Bergerac escreve também uma sequela: “História Cómica dos Estados e Impérios do Sol”, publicada também postumamente em 1662.
O progressivo conhecimento do sistema solar, acrescentado então pela sistemática observação do cosmos permitida pelo telescópio -- iniciada em Março de 1610 por Galileu Galilei --, expandiu a imaginação literária e fantasiosa para espaços mais afastados da Terra, da Lua e do Sol. Ou seja, permitiu que a imaginação migrasse para além dos astros do dia-a-dia.
O filósofo francês Voltaire (1694-1778), grande divulgador das ideias da mecânica celeste e da atracção universal do físico e matemático Isaac Newton (1643-1727), escreveu por volta de 1732 um conto de ficção científica intitulado “Micromegas”. Só publicado em 1752, e com o subtítulo “História Filosófica”, Voltaire relata a “viagem de um habitante do mundo da estrela Sirius até ao planeta Saturno”. O viajante é Micromegas, que, ao modo de um Gulliver espacial, visita vários cantos do cosmos e dá-nos conta dos contrastes entre os usos e costumes dos povos que por esses outros mundos astrais vai encontrando.
Apesar de se tratar de ficção científica tal e qual a dimensionamos hoje, Voltaire lavra o seu conto com a ciência da época e a filosofia de todos os tempos. O principal que se sabia de astronomia e física no século XVIII está dito ou subentendido ao longo do texto.
No final, Micromegas oferece aos pequenos humanos, nomeadamente ao secretário da Academia de Paris, um livro de filosofia onde diz estar contido o sentido de todas coisas. Mas esse livro encontra-se inteiramente em branco, numa metáfora de que o conhecimento de um cosmos ordenado estará sempre inacabado.
Há autores que identificam nas várias culturas alienígenas descritas ao longo de “As Viagens de Gulliver”, obra publicada em 1726 por Jonathan Swift (1667-1745), elementos de uma ficção científica de cariz antropológico, em que a fantasia sublinha o espanto das descobertas da zoologia e da botânica, então muito em foco pelas várias expedições naturais-filosóficas efectuadas sob a égide das várias sociedades científicas emergentes no velho mundo ocidental.
Façamos um ponto da situação.
Estamos no século XVIII, o século das luzes, com a razão a transitar para o industrializado século XIX. O Homem já não habita mais o centro do Universo e os avanços e descobertas científicas começam a desvendar os contornos da sua natureza biológica e evolutiva. O Homem deixa de ser o centro da criação e tem lugar igual aos dos outros animais e plantas que com ele coabitam um mesmo planeta, com uma história geológica até então inimaginável e insuspeita. Como anteriormente, e sob uma base de conhecimento científico, os medos e os sonhos catárticos desaguam em novos e fantasiosos romances.
Em 1818, Mary Shelley (1797-1851) publica “Frankenstein”. Este outro best-seller da literatura mundial é por alguns autores considerado a obra que define o início do género literário de cuja pré-história temos vindo a perscrutar. Conjuntamente com outro livro de Mary Shelley, “O Último Homem”, publicado em 1826, o figurino do romance científico começa a florestar os territórios da literatura e a ganhar estatuto de género literário próprio.
É de referir ainda uma outra obra, incontornável na integração romanceada do novo conhecimento científico sobre a evolução das espécies e da natureza química e biológica do homem: “O Médico e o Monstro”, escrito em 1886 por Robert Louis Stevenson (1850-1894). Este é outro exemplo excelente do novo romance científico do século XIX, em que as pulsões animalescas e humanas compaginam numa natureza humana una, num conflito imemorial sobre a natureza e lugar do homem na sociedade à luz do conhecimento científico da época.
Recorde-se que Charles Darwin (1809-1882) tinha publicado em 1859 um dos principais livros da história da ciência: “A Origem das Espécies”. Com ele revolucionou o panorama científico e religioso da época, o entendimento sobre a evolução do próprio homem, numa sociedade já por si transformada pela revolução industrial fruto da ciência e da tecnologia.
A ficção científica borbulhava a todo o vapor num espaço que a física e a química modernas estavam então a atomizar e relativizar e em que a telefonia sem fios permitia a comunicação à distância, através do ar, na concretização tecnológica do que antes teria sido pura magia (e bruxaria).
Como escreveu Sir Arthur C. Clarke (1917-2008) “a tecnologia suficientemente avançada é pura magia”. Recorde-se que C. Clarke é considerado o “pai” do primeiro satélite de comunicações geoestacionário, para além de ter sido um profícuo escritor de ficção científica. Exemplo maior é a sua obra “2001- uma Odisseia no Espaço” (que viria a servir de matriz para o guião do filme homónimo realizado por Stanley Kubrick). Mais uma vez ciência, tecnologia e ficção coexistem numa mesma personalidade!
A ficção científica, ao fixar ciências e tecnologias descontextualizadas no tempo e no espaço, permitiu a discussão de hipóteses, conjecturas, ideias, sonhos (que são força motriz do conhecimento e da confiança no ser humano em resolver problemas), que de outra forma seriam sublimados sob o calor de uma fogueira inquisitorial. É a extrapolação do que se conhece cientificamente e que através do sonho se projecta para um futuro de esperança.
E, por último, o fim da pré-história da ficção científica. Principal e indubitavelmente com Júlio Verne (1828-1905) e com H.G. Wells (1866-1946), o género afirma-se distinguível de qualquer outro e atinge um admirável mundo novo, desde a Lua ao centro da Terra, em que as viagens no tempo e no espaço ultrapassam todos os limites físicos conhecidos, mas passando sempre e sempre pela reflexão sobre a natureza, origem e destino do próprio homem por universos em expansão.
Nota: As obras e os autores e cientistas referidos ao longo deste texto, publicado em três partes neste Diário de Coimbra, são os de referência para traçar uma linha condutora e cronológica para uma pré-história do género compreendido pela ficção científica. Outras haverá por incluir. Quase todas estão por traduzir para a língua portuguesa. Assim, este texto pretende ser mais um ponto de partida para uma viagem pelo imaginário humano, do que uma lista exaustiva e acabada de uma história ainda muito pouco conhecida e consensual.
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António Piedade
Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva
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António Piedade
António Piedade é Bioquímico e Comunicador de Ciência. Publicou mais 700 artigos e crónicas de divulgação científica na imprensa portuguesa e 20 artigos em revistas científicas internacionais. É autor de nove livros de divulgação de ciência: "Íris Científica" (Mar da Palavra, 2005 - Plano Nacional de Leitura),"Caminhos de Ciência" com prefácio de Carlos Fiolhais (Imprensa Universidade de Coimbra, 2011), "Silêncio Prodigioso" (Ed. autor, 2012), "Íris Científica 2" (Ed. autor, 2014), "Diálogos com Ciência" (Ed. autor, 2015) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Íris Científica 3" (Ed. autor, 2016), "Íris Científica 4" (Ed. autor, 2017), "Íris Científica 5" (Ed. autor) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Diálogos com Ciência" (Ed. Trinta por um Linha, 2019 - Plano Nacional de Leitura) prefaciado por Carlos Fiolhais. Organiza regularmente ciclos de palestras de divulgação científica, entre os quais, o já muito popular "Ciência às Seis". Profere regularmente palestras de divulgação científica em escolas e outras instituições.
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