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O abate de metade da ciência portuguesa

03 Set 2014 - 10h46 - 4.708 caracteres
Género: Crónicas. Áreas:
Por: Carlos Fiolhais

Os países que se querem desenvolvidos precisam de ciência e da tecnologia que nela assenta. Em regra, quanto mais desenvolvido é um país, maior e mais produtivo é o seu sistema de ciência e tecnologia. Sem ciência e tecnologia actualizados ficamos completamente desprevenidos. Basta olhar para um caso recente como o da epidemia do Ébola, que só se resolve com ciência e tecnologia. Sem investigação própria ou com investigação própria muito reduzida, Portugal em caso de necessidade séria ficaria na mesma situação que a Serra Leoa e a Libéria, dependendo da ajuda internacional para saber como lidar com o vírus. Sem ciência nem saberíamos sequer que a grave doença se deve a um vírus e talvez sacrificássemos galinhas pretas na esperança que a epidemia passasse.

Um país não se torna mais desenvolvido, antes pelo contrário, deitando fora metade do seu sistema de ciência e tecnologia. Mas é isso mesmo o que está a acontecer, empobrecendo-nos a todos, num processo cheio de fragilidades. Em finais de Junho foram anunciados os resultados da “avaliação” (entre aspas pois de avaliação só tem o nome) promovida pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), a agência portuguesa que financia a investigação nacional, a todas as unidades de investigação científica. Ergueu-se logo uma enorme vaga de protestos, uma vez que os resultados eram maus demais para serem verdade: metade das unidades nacionais onde se faz pesquisa tinham sido liquidadas ou quase, pois, ou não lhes seria atribuído qualquer financiamento, ou ser-lhe-ia apenas atribuído um financiamento tão ridículo que não chegaria para sequer assegurar a sobrevivência.

Vistas bem as coisas, os resultados eram maus porque o método de “avaliação” era mau. Descobriu-se que havia uma quota escondida no contrato entre a FCT e a European Science Foundation (ESF), a quem tinha sido encomendada a “avaliação”: 50 por cento dos centros eram, à partida, para serem extintos na prática, de acordo com a teoria de um investigador, António Coutinho, que falou da necessidade de uma “poda”, pretendendo dizer que o sistema científico português tinha crescido demais, sendo preciso cortar muitos ramos. Estava equivocado, pois ainda estávamos aquém da média europeia apesar de um grande crescimento recente que bem nos pode orgulhar. Mas a sua teoria resultou num erro enorme. A “poda” realizada pela FCT/ESF não foi, de facto, uma “poda”, pois, aceitando a comparação dos centros de pesquisa com árvores, limita-se a abater à machadada, cortando o tronco, e um pouco ao acaso, metade das árvores do pomar, mesmo algumas que estavam a dar muitos bons frutos. Apurou-se ainda, uma vez conhecidos os “avaliadores” da ESF e as classificações por eles atribuídas, que as regras do processo tinham sido modificadas a meio do percurso, diminuindo o número de avaliadores. Em resultado, em muitos casos as notas foram efectivamente dadas por um grupo muito restrito de não especialistas, que nalguns casos emitiam meros palpites.

Chamada a atenção da FCT e do ministro da Ciência e Tecnologia Nuno Crato – e todos chamaram a atenção, investigadores, sociedades científicas, grandes laboratórios e instituições, reitores de Universidades, directores de Politécnicos, dirigentes de associações que reúnem os investigadores – a resposta foi praticamente nenhuma. A FCT e o ministro permaneceram cegos, mudos e surdos perante a acumulação de provas de que o processo tinha sido mal conduzido e que o país, no fim desse processo, ia ficar mais pobre do que estava. Para eles tudo estava bem. Para eles vivemos no melhor dos mundos. Mas os milhares de investigadores espalhados pelo país e os milhões de cidadãos que pagam a ciência com os seus impostos, esperando vir a viver melhor, não pensam o mesmo. Para o governo tudo pode estar bem, mas para o país e para nós, infelizmente, tudo está pior.

Carlos Fiolhais

Professor universitário (tcarlos@uc.pt


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Carlos Fiolhais

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