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Dois tipos de património que se complementam

12 Mar 2015 - 11h42 - 5.438 caracteres

A cidade de Aveiro tem no seu centro urbano um belo exemplo de conjugação de dois bens patrimoniais importantes na sua história.

Um deles, entendido e preservado como património construído, é a antiga fábrica de cerâmica de Jerónimo Pereira Campos, uma pérola da arquitectura industrial, em barro vermelho, do primeiro quartel do século XX. De grande relevância na história da economia local, esta grande e desactivada unidade fabril foi inteligentemente adaptada a Centro Cultural e de Congressos, em 1995.

O outro bem deve ser entendido e preservado como património natural. Trata-se do barreiro anexo, do qual se extraiu, durante décadas, a matéria-prima, ou seja, a argila ali trabalhada na produção de telhas e tijolos.

Conheci este barreiro, nos anos 60 e guardo dele uma bela fotografia, na qual se pode ver um conjunto de camadas de argila, paralelas e horizontais, alternadamente brancas e acinzentadas, por vezes rosadas, devido a impregnação ligeira de óxido de ferro.

Estas argilas são sedimentos muito finos trazidos por via fluvial e acumulados numa área plana, próxima do mar, que caracterizou toda esta região, no final da Era dos Répteis, mais precisamente, no topo do Cretácico, há cerca de 70 a 65 milhões de anos.

No seio destas argilas foram encontrados fósseis animais e vegetais, que nos permitem reconstituir uma paisagem tropical, alagadiça, onde, entre outros, viveram dinossáurios, crocodilos, tartarugas e peixes de grandes dimensões.

Entre os fósseis daqui retirados destaca-se a carapaça de uma tartaruga, até então desconhecida, descrita em 1940 pelo Prof. Carrington da Costa, da Universidade do Porto, como espécie nova para a ciência, a que deu o nome de Rosacea soutoi, em homenagem ao seu achador, Alberto Souto, um aveirense curioso das coisas da natureza, um exemplo que não tem encontrado seguidores.

O barreiro em causa é o único e último testemunho, na região, desse tempo antigo, imediatamente anterior à grande extinção que marcou o fim da era mesozoica e o começo dos tempos modernos, com grandes mudanças no clima, na flora e na fauna.

Em inícios de 1999, o meu colega Britaldo Rodrigues, geólogo e então professor catedrático do Departamento de Geociências da Universidade de Aveiro, tomou conhecimento de que o executivo camarário aprovara o plano urbanístico de pormenor do centro da cidade, que abrangia a área envolvente do novo Centro Cultural e de Congressos.

Entre outros equipamentos, este plano previa a construção de imóveis sobre o dito barreiro do qual ainda resta um vulgaríssimo talude, parcialmente oculto pela vegetação bravia, e um imenso fosso cheio de água estagnada, num conjunto, cuja imagem, inestética e desagradável à vista, oculta a sua real e natural beleza.

Neste sentido, este meu colega promoveu uma sessão de esclarecimento que intitulou “Património Geológico de Aveiro – O barreiro da Fábrica Jerónimo Pereira Campos e a Extinção dos Dinossáurios”, que teve lugar na Biblioteca Municipal, no serão de 22 de Abril de 1999.

Para conferencistas e orientadores do debate previsto, convidou-me a mim e ao Prof. Telles Antunes, da Universidade Nova de Lisboa.

Nesta sessão marcaram presença o então Presidente da Autarquia, Alberto Souto (neto do achador do fóssil de tartaruga, atrás referido) e alguns vereadores.

Reafirmo o significado pedagógico e cultural deste património geológico e paleontológico que, para além desse nível de importância, acumula o grande significado que teve como fonte da matéria-prima que deu azo à edificação do belo imóvel fabril, com o qual se conjuga lógica e harmoniosamente.

Da conversa que, no final da sessão, travámos com os ilustres autarcas, ficámos esperançados na boa resolução deste caso. Entretanto mudou a vereação e, lamentavelmente, este propósito adormeceu algures, numa gaveta da autarquia, e o certo, é que já passaram dezasseis anos.

Em 2008 publiquei num jornal local um artigo versando o essencial das considerações que ora apresento.

Na sequência desse artigo, o Vereador, Dr. Miguel Capão Filipe dirigiu-me convite para me deslocar a Aveiro para uma reunião visando esta problemática.

O barreiro, cuja desejável musealização se limita, praticamente, à limpeza do escarpado, a fim de evidenciar as camadas de argila, e ao ajardinamento e embelezamento do “lago” que ali se formou (em resultado da lavra), ainda ali se conserva, parcialmente oculto, mas intacto.

Só falta vontade política de o transformar num pólo de atracção cultural e pedagógica associado ao magnífico Centro Cultural e de Congressos.

 

A.M. Galopim de Carvalho


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A.M. Galopim de Carvalho

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