Onde moram as palavras?
Precisamos das palavras para viver. Elas são uma das essências do nosso pensamento, que faz de nós os seres humanos que somos. As palavras que usamos, e o modo como as usamos, dizem muito de quem nós somos.
Sabemos que é no cérebro que as palavras ganham os seus significados, é no cérebro que estão “guardadas” as memórias que a elas estão associadas. Mas onde moram as palavras no cérebro? Haverá algum local próprio para cada uma das milhares de palavras que usamos? E palavras de línguas diferentes terão “moradas” distintas no cérebro?
Para melhor compreender como é que o cérebro processa palavras ouvidas, investigadores neurocientistas da Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos Estados Unidos da América, usaram técnicas de imagiologia por ressonância magnética funcional (fMRI) para visualizar e mapear as regiões do cérebro de sete voluntários enquanto este ouviam, de olhos fechados, segmentos de mais de duas horas de uma história retirada do programa de rádio The Moth Radio Hour. Os cientistas seleccionaram, neste estudo, um conjunto de 985 palavras, constituído maioritariamente por substantivos e verbos.
A imagiologia por ressonância magnética funcional mede as variações do fluxo sanguíneo (a que correspondem variações no consumo de oxigénio por parte das células neuronais) nas diferentes regiões do cérebro, o que é associado à activação neuronal dessas zonas.
Com os milhares de dados obtidos foi gerado um atlas semântico que pode ser consultado neste site: http://gallantlab.org/huth2016. Nele é possível identificar localizações específicas de diversas famílias de palavras em diferentes regiões cerebrais. Parece haver “moradas” para as palavras! E os investigadores verificaram que essas localizações eram surpreendentemente semelhantes em todos os sete indivíduos que participaram no estudo!
Usando os mapas obtidos, os investigadores desenvolveram um algoritmo matemático que lhes permitiu prever qual a resposta neural dos participantes no estudo, aquando da audição de outras histórias nunca antes ouvidas! Ou seja, a “morada” cerebral de cada uma das 985 palavras estudadas parece ser independente da história em que estão contextualizadas.
Ao contrário do que se esperava tendo em conta anteriores dados e estudos clínicos de doentes com danos cerebrais, este estudo revelou que tanto o hemisfério esquerdo, como o hemisfério direito do cérebro, estão envolvidos na actividade de atribuir significado às palavras. Até agora, os cientistas associavam o processamento da linguagem ao hemisfério esquerdo, num processo chamado de lateralização. Mas por outro lado, o que os cientistas observaram nestas experiências foi a audição e não a produção de linguagem. Assim, estas duas actividades poderão possuir arquitecturas funcionais distintas no cérebro. Quando se está a avaliar a compreensão das palavras no cérebro, os resultados apontam para que os dois hemisférios trabalhem em conjunto.
Todo este estudo foi publicado na revista Nature da passada quinta-feira (http://www.nature.com/nature/journal/v532/n7600/full/nature17637.html) e é um ponto de partida, mais que um de chegada. Abrem-se com ele novas perspectivas de investigação e surgem novas questões ainda sem resposta, como é próprio da ciência.
Por exemplo, os autores deste estudo consideram importante ampliar o número de indivíduos a estudar e verificar se o atlas semântico agora obtido pode ser aplicado a pessoas de outras línguas e de outras culturas.
Quanto a aplicações, e pondo de lado a fácil especulação de desenvolver uma técnica para “ler” o pensamento, a equipa de cientistas antecipam futuras aplicações médicas: “Um descodificador de linguagem pode ter um valor incalculável para indivíduos com problemas de comunicação como na esclerose lateral amiotrófica e na síndrome do encarceramento” diz Jack Gallant, o líder da equipa deste estudo.
Este é mais um passo experimental da moderna neurociência que nos diz também, com humildade, o quanto ainda não sabemos sobre o funcionamento do nosso cérebro.
António Piedade
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António Piedade
António Piedade é Bioquímico e Comunicador de Ciência. Publicou mais 700 artigos e crónicas de divulgação científica na imprensa portuguesa e 20 artigos em revistas científicas internacionais. É autor de nove livros de divulgação de ciência: "Íris Científica" (Mar da Palavra, 2005 - Plano Nacional de Leitura),"Caminhos de Ciência" com prefácio de Carlos Fiolhais (Imprensa Universidade de Coimbra, 2011), "Silêncio Prodigioso" (Ed. autor, 2012), "Íris Científica 2" (Ed. autor, 2014), "Diálogos com Ciência" (Ed. autor, 2015) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Íris Científica 3" (Ed. autor, 2016), "Íris Científica 4" (Ed. autor, 2017), "Íris Científica 5" (Ed. autor) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Diálogos com Ciência" (Ed. Trinta por um Linha, 2019 - Plano Nacional de Leitura) prefaciado por Carlos Fiolhais. Organiza regularmente ciclos de palestras de divulgação científica, entre os quais, o já muito popular "Ciência às Seis". Profere regularmente palestras de divulgação científica em escolas e outras instituições.
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