Fico ou vou dar uma volta?
As pessoas que sofrem de transtorno obsessivo-compulsivo não conseguem parar de executar certas tarefas motoras como, por exemplo, lavar as mãos. Podem passar horas literalmente presas ao lavatório.
No outro extremo do espectro, estão as pessoas com perturbação de hiperatividade e défice de atenção (PHDA), que não conseguem sustentar a mesma ação motora durante muito tempo: ora estão sentados, ora de pé, ora a andar às voltas, sempre irrequietos, constantemente a fazer isto ou aquilo sem razão aparente.
O que é que faz com estas pessoas sejam incapazes de controlar os seus gestos voluntários mais quotidianos - e, nalguns casos, os seus pensamentos -, tornando-se assim escravas da repetição sem fim de uma mesma ação ou de um sem-fim de ações sem rumo?
Resultados publicados no dia 21 de Julho, na revista Cell (http://www.cell.com/cell/fulltext/S0092-8674(16)30803-0), por um grupo de neurocientistas, liderado por Rui Costa, do Centro Champalimaud em Lisboa, e cujo autor principal é Fatuel Tecuapleta, agora a trabalhar na Universidade Nacional Autónoma de México, na Cidade do México, poderão ajudar a perceber o que desencadeia estas perturbações no cérebro. E também, vislumbrar formas mais eficazes de tratar estas e outras doenças neuro psiquiátricas.
Há muito que se pensa que o processo de seleção de uma determinada ação é mediado, no cérebro, por dois circuitos neuronais, conhecidos por via direta e via indireta, localizados numa zona cerebral chamada gânglios da base.
“Todas as doenças que afetam os gânglios da base - Parkinson, Huntington, Tourette [ou doença dos tiques] - têm um ponto em comum”, diz Rui Costa: “Os doentes não conseguem controlar os seus movimentos”.
Também é muito provável que os movimentos repetitivos no autismo e os pensamentos repetitivos incontroláveis na psicose e nas obsessões estejam ligados a anomalias da atividade nestes circuitos, segundo o cientista.
A questão fundamental reside então em saber como é que, em condições normais, esses circuitos interagem permitindo que os movimentos sejam fluídos e bem coordenados e que a escolha das ações, em particular motoras, seja oportuna e não aleatória.
Dicotomia obsoleta
O modelo teórico que era até agora utilizado para descrever as respetivas funções destas duas vias estipulava que a ativação da primeira provocaria a ação, enquanto a ativação da segunda inibiria a ação. Porém, esta visão foi desafiada por um estudo publicado por Rui Costa em 2013 na Nature e, desde então, tem vindo a ser posta em causa por laboratórios de diversos países e está a perder terreno face aos resultados experimentais obtidos nos últimos anos.
Em particular, a equipa de Rui Costa publicou, em Abril passado na revista Current Biology, um artigo onde que mostra que as duas vias nem sempre estão a competir uma com a outra, mas que funcionam em simultâneo para promover resultados distintos.
Não é uma questão de polícia bom, polícia mau”, diz Rui Costa. “Não há simplesmente uma via que diz ‘faz’ e outra que diz ‘não faz’”. A realidade é mais complexa do que isso e ambas as vias são necessárias tanto para promover uma ação como para a interromper.
O artigo agora publicado na Cell vai mais além e avança com um modelo alternativo do funcionamento conjunto das duas vias que permite explicar os resultados experimentais, incluindo aqueles que se baseiam no modelo clássico.
Os investigadores realizaram, ao longo de seis anos, experiências recorrendo às ferramentas da optogenética, uma técnica que permite a ativação seletiva de cada uma das vias em causa no cérebro de ratinhos.
Numa série de experiências, os animais, colocados numa caixa, tinham de carregar cerca de oito vezes numa alavanca para obter comida. E, ao longo de várias semanas de treino, aprenderam a carregar um número suficiente de vezes na alavanca para serem recompensados.
Uma vez acabado o treino, os cientistas começaram a submeter os ratinhos, durante a execução da tarefa, a séries de impulsos luminosos de alta frequência de forma a ativar fortemente seja a via direta, seja a indireta.
Poder de veto
Constataram então que, quando a via direta é perturbada, os animais param de carregar na alavanca e ficam imóveis, “congelados”.
Pelo contrário, quando a via indireta é perturbada, os animais não ficam no sítio: interrompem a ação, afastam-se da alavanca e vão explorar outras zonas da caixa. Tudo se passa como se, apesar de perfeitamente treinados, de repente decidissem fazer outra coisa, neste caso ir dar uma volta.
Para Rui Costa, estes resultados sugerem que o papel da via direta é sustentar a ação, enquanto o da via indireta é permitir - ou não - a mudança de uma ação para outra. “O que vemos é que, por razões diferentes, a via direta ‘diz’ ao animal o que deve fazer e continuar a fazer, enquanto a via indireta permite que essa ação se realize, aprova-a - mas tem também o poder de deixar de a permitir, o poder de veto”.
Isto bate certo com o que os especialistas percebem hoje dos mecanismos subjacentes às doenças que afetam os gânglios da base. Como explica Rui Costa: “Pensa-se que, no transtorno obsessivo-compulsivo, caracterizado pela repetição, é a via direta que está demasiado ativa, promovendo a repetição da ação. Já a PHDA, caracterizada por gestos erráticos e imprevisíveis, tem a ver com perturbações da via indireta”.
O novo modelo poderá ter implicações terapêuticas. Hoje em dia, a doença de Parkinson, por exemplo, é tratada com um medicamento, a L-Dopa, que ativa a via direta e inibe a indireta - o que faz com que, a prazo, os doentes desenvolvam movimentos repetitivos incontroláveis. Também o haloperidol, conhecido anti-psicótico, que ativa fortemente a via indireta, produz efeitos indesejáveis cognitivos e motores: uma lentidão nos movimentos e no próprio pensamento dos doentes.
“Em vez de ativar massivamente uma das duas vias, talvez seja possível tratar as doenças dos gânglios da base com moduladores mais fracos da atividade dos dois circuitos em simultâneo. Esta poderá ser uma alternativa mais eficaz”, diz Rui Costa. “Não se trata de inibir ou ativar uma das duas vias, mas sim de restabelecer o equilíbrio entre elas.”
Fundação Champalimaud
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