Hortas urbanas e alterações climáticas
Estudar hortas urbanas nunca foi um desígnio na minha carreira. Escolhi o curso de arquitectura por ser uma profissão criativa mas a minha geração deparou-se com os primeiros sinais alarmantes de ameaças ambientais globais (o primeiro alarme foi o buraco de ozono) e por isso logo no mestrado optei por estudar formas de arquitectura mais ecológicas já que a arquitectura contribui em muitas formas para a degradação do ambiente natural nomeadamente é a principal consumidora de recursos naturais. Por isso durante o mestrado acabei por estudar estratégias solares passivas adequadas a qualquer clima, assim minimizando o seu consumo energético e aprendi a especificar materiais com baixo impacto ambiental.
Assim que comecei a trabalhar na área, nomeadamente em ateliers nos EUA, percebi que apesar do processo de concepção arquitectónico ser já complexo e interdisciplinar, (sendo que os arquitectos têm essa capacidade de lidar com equipas multidisciplinares porque têm que coordenar muitos projectos de especialidades dentro do projecto de arquitectura) não bastaria certificar ambientalmente um edifício, ou dois ou três para minimizar o efeito ilha de calor nas cidades, ou mitigar as cheias em cidades muito densificadas. Para obter resultados palpáveis é preciso trabalhar à escala do urbanismo. E é preciso que as cidades se preparem para estes eventos causados pelas alterações climáticas mas também para outros eventos que são imprevisíveis como sismos ou conflitos armados com consequências dramáticas em populações altamente dependentes dos serviços disponíveis numa urbe. Assim a vulnerabilidade das populações urbanas fez-me interessar por arquitectura de emergência e por materiais alternativos (tipo palha, bambu e terra) já que em caso de catástrofe, quando a tecnologia falha e os recursos escasseiam, temos que voltar a um modo de vida simples e frugal .
Assim surgiu o meu gosto em estudar cidades resilientes, com modos de vida sustentáveis e governança comprovada. Fui viver para a Alemanha, o país europeu que sofreu mais guerras mundiais e grandes convulsões políticas e sociais. Neste país (e também no Reino Unido) as hortas urbanas sustentaram a população urbana durante quase 8 anos de guerra. Mais tarde, e durante os 40 anos de comunismo na Alemanha democrática, também as hortas ajudaram a complementar a alimentação urbana. No caso de Leipzig, cidade de leste, os Kleingärten (hortas urbanas com mais de 100 lotes, sendo que cada lote tem entre 150m2-400m2) têm mais de 150 anos e surgiram durante o período da Revolução industrial, providenciando alimentos frescos às famílias proletárias, assim como espaço ao ar livre para as crianças crescerem de forma saudável. Foi um pediatra, Dr. Schreber , quem implementou esta ideia junto de um pároco que viria a criar o primeiro loteamento urbano exclusivamente para horticultura, tendo assim iniciado o movimento Schrebergarten que rapidamente se estendeu pela Europa central. Foram estas hortas urbanas extremamente organizadas que persistiram em Leipzig até aos nossos dias, tornando-a na segunda cidade europeia com maior área de hortas por habitante (23m2 per capita). Hoje estas hortas são usadas fundamentalmente para recreio e lazer dos mais idosos, enquanto as gerações mais jovens ocupam os terrenos baldios e criam hortas comunitárias, que são de forma geral mais espontâneas e mais ecológicas.
Contudo são os kleingärten que hoje são reconhecidos como uma importante infra-estrutura verde para ajudar a mitigar as alterações climáticas. Isso deve-se ao facto destas área contribuírem para a infiltração da água da chuva (a área total de hortas em Leipzig é de 1229 ha, correspondendo a 4% da área urbana total). Estes espaços contêm também várias árvores de médio e grande porte e por isso contribuem para o sequestro do carbono , arrefecimento do ar por evapo-transpiração, e ainda para a filtração de poluentes aéreos. Adicionalmente as hortas urbanas produzem vegetais e fruta como complemento alimentar das famílias, promovem a saúde dos horticultores mais idosos, e por último são espaços urbanos que abrigam várias espécies animais e vegetais, contribuindo para a biodiversidade urbana e por isso para um ecossistema mais equilibrado (http://dx.doi.org/10.1016/j.ufug.2017.02.008)
Assim é mais fácil perceber a importância para a cidade destes espaços multifuncionais. Estas funções são chamadas em ecologia de «Serviços de Ecossistema» porque consistem nos serviços prestados pela natureza ao homem. Esta funcionalidade da natureza ajuda-nos a perceber a importância do seu papel e a respeitar a sua conservação.
Naturalmente que depois de estudar estas hortas, não resistimos à comparação com o caso de Lisboa. Na capital portuguesa, as hortas sempre estiveram presentes até ao seculo XIX, tendo então sobrevivido apenas nas zonas suburbanas após a industrialização. Algumas hortas ilegais também nasceram durante o período do retorno das colónias. Mais recentemente, depois da crise de 2008, a Estratégia verde de Lisboa decidiu implementar novos parques hortícolas para fins ocupacionais, pedagógicos e ecológicos. Assim temos hoje cerca de 20 novos parques incluindo alguns outrora ilegais que foram entretanto organizados, como o Parque do Vale de Chelas. Notavelmente a Câmara tem demonstrado perceber o papel multi-funcional destes espaços. Contudo não existem regulamentos rigorosos e fiscalização, nem associações que controlem a qualidade estética das hortas como no caso de Leipzig. Apesar disso os parques hortícolas de Lisboa estão bem integrados em parques de recreio e merecem por isso um elogio porque potenciam a conectividade entre espaços verdes tão importante para o equilíbrio ecológico.
No caso das hortas comunitárias (resultantes de iniciativas de bairro, e em numero reduzido) Lisboa ainda possui poucas comparativamente com Leipzig. Porém seria importante considerar o valor destas iniciativas que já provaram a sua importância em cidades médias como Todmorden, no Reino Unido. Neste caso, a vila tomou a iniciativa de promover hortas comunitárias invertendo a tendência de despovoamento. De facto, a vila outrora maioritariamente fabril é hoje assolada pelo desemprego. Perante tal a população decidiu voltar às raízes agrícolas e começar a cultivar todos os espaços vazios das cidades, contando com o apoio da Câmara, tendo-se tornado uma atracção turística, e constituindo uma referência mundial de revitalização urbana na Europa (https://www.springer.com/gp/book/9783319537504).
Inês Cabral
(link para o perfil no GPS: https://gps.pt/u/inescabral/about#person-info__summary)
Figura 1. Parque hortícola em Olivais, Lisboa
Figura 2. Mariannengarten em Leipzig, Alemanha
© 2017 - Ciência na Imprensa Regional / Ciência Viva
Inês Cabral
Os meus temas de investigação centram-se na arquitectura bioclimática, no urbanismo sustentável e na ecologia urbana. Como arquitecta pretendo entender como se pode aumentar a resiliência das cidades e quais deverão ser as estratégias de planeamento para mitigar a pegada ecológica urbana. Depois de fazer investigação em certificação ambiental de edifícios, arquitectura de emergência e materiais alternativos em Portugal, mudei-me para Leipzig (Alemanha) para estudar soluções como a produção de alimentos locais como é o caso das hortas urbanas, e como estas contribuem para os serviços de ecossistema e biodiversidade urbana. Recentemente iniciei um projecto sobre fachadas verdes para Leipzig e o seu papel como nature-based-solutions para mitigar as alterações climáticas.
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