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«A memória é algo que me fascina»

26 Out 2017 - 12h45 - 8.851 caracteres

Entrevista a Raquel Abreu, neurocientista da Universidade de Santa Barbara, na Califórnia, Estados Unidos.

 

Originária de Vila Nova de Famalicão, Raquel Abreu é neurocientista e estuda a memória de curto prazo. Esta entrevista foi realizada no âmbito do GPS - Global Portuguese Scientists, um site onde estão registados os cientistas portugueses que desenvolvem investigação por todo o mundo.

 

Entrevista:

 

Pode descrever de forma sucinta (para nós, leigos) o que faz profissionalmente?

 

Sou Neurocientista, ou seja, faço investigação na área da Neurociência. E o que é Neurociência? Neurociência é o estudo científico do sistema nervoso, o qual inclui o cérebro, a medula espinal, os nervos e os gânglios nervosos. Dada a complexidade do sistema nervoso, o seu estudo é igualmente complexo e requer um conhecimento multidisciplinar em várias áreas, nomeadamente biologia, farmacologia, psicologia, medicina, e metodologia computacional. Eu, por exemplo, tenho formação em Bioquímica, Bioinformática e Neurociência. O objectivo final da comunidade de neurocientistas é definir a anatomia e a função do sistema nervoso e usar esse conhecimento para o desenvolvimento de medicamentos, instrumentos ou procedimentos clínicos que serão aplicados na prevenção, tratamento ou cura de doenças neurológicas.

A investigação pode ser definida como fundamental, translacional ou clínica. Eu trabalho num laboratório onde fazemos investigação fundamental, também designada de investigação básica. Para estes estudos recorremos a modelos animais, como por exemplo ratinhos. A grande vantagem destes modelos é a disponibilidade de técnicas bastante avançadas para a visualização e medição de actividade neuronal que nos permitem estudar em detalhe o cérebro. Já estive envolvida em vários projectos de investigação, mas actualmente estou a investigar a memória de curta duração e a memória de trabalho. Ainda pouco se sabe acerca das regiões do cérebro e dos mecanismos necessários para o armazenamento destas memórias. De uma forma muito geral, estou a estudar o cérebro de ratinhos enquanto estão a desempenhar uma tarefa que envolve a memorização de curta duração de informação visual. Depois de uma fase intensiva de treino destes animais, uso microscópios especificamente desenvolvidos para visualizar e medir a actividade eléctrica de centenas de neurónios em simultâneo, ou de regiões do cérebro que sejam de interesse.

 

Agora pedimos-lhe que tente contagiar-nos: o que há de particularmente entusiasmante na sua área de trabalho?

 

Costumo comparar Neurociência com a montagem de um puzzle. Cada neurocientista tenta contribuir com uma nova peça para decifrar um puzzle de biliões de peças que constitui o cérebro. O cérebro fascina-me pela sua complexidade e pelo mistério que ainda reside nos biliões de neurónios que o constituem. Apesar do aumento significativo de investigação em Neurociência nas últimas décadas, ainda há muito por explorar e muitas peças do puzzle para descobrir.

Pessoalmente, acho que qualquer estudo relacionado com o cérebro é aliciante e um constante desafio. A cada descoberta segue-se sempre mais uma incerteza, uma curiosidade, um novo desafio que cativa os neurocientistas na sua busca incessante de respostas. A memória, em particular, é algo que me fascina. Existem inúmeras doenças neurológicas que afectam a memória. Mesmo num envelhecimento normal, a memória é uma das primeiras funções cognitivas a ser afectada. O meu objectivo, enquanto neurocientista, é contribuir com mais uma peça do puzzle acerca da memória.

 

 

Por que motivos decidiu emigrar e o que encontrou de inesperado no estrangeiro?

 

O meu percurso académico e profissional não foi muito planeado. Tudo foi acontecendo naturalmente. Com muito esforço e dedicação, fui alcançando desafios a que me propus. E quando as oportunidades surgiram não hesitei em aproveitá-las. Acho que tenho um lado aventureiro que me levou a ser cientista e a sair do país pela primeira vez.

Em 2008, quando decidi trabalhar em San Antonio, Texas, não tinha qualquer expectativa, estava simplesmente aberta a uma nova experiência, pessoal e profissional. Felizmente, foi uma experiência bastante positiva e muito enriquecedora a todos os níveis. Gostei de trabalhar no sistema académico americano pelo seu profissionalismo, rigor, e disponibilidade de recursos. Assim como da pontualidade e eficiência do sistema. Tive também a oportunidade de interagir com uma comunidade científica diversa, cultural e cientificamente, “open-minded” e menos formal do que em Portugal. Dada a minha personalidade foi bastante fácil a adaptação. Regressei a Portugal para iniciar o meu doutoramento com a Fundação Champalimaud e não hesitei quando me foi dada a oportunidade de regressar aos EUA para trabalhar no meu projecto de doutoramento. Estive na UCLA durante 5 anos. Esta experiência foi ainda melhor do que a primeira. Mais uma vez, tive o privilégio de conhecer e trabalhar com cientistas de alto renome. E o que tornou esta experiência ainda melhor foi viver na cidade de Los Angeles. O estilo de vida californiano cativou-me a 100%. Foi fácil a decisão de regressar para os EUA após a conclusão do meu doutoramento. Mudei-me este ano para Santa Barbara, Califórnia, para trabalhar na UCSB.

 

Que apreciação faz do panorama científico português, tanto na sua área como de uma forma mais geral?

 

Penso que a investigação em Portugal ainda está bastante limitada pela falta de recursos e investimento. Infelizmente, a ciência em Portugal é financiada maioritariamente pelo estado estando, por isso, sempre sujeita à instabilidade política e financeira do país. Devido a este panorama científico, muitos projectos acabam por ser abandonados por falta de financiamento. E, quem sabe, se ideias brilhantes estão a ser desperdiçadas.

Na minha opinião, ser cientista em Portugal é ainda mais desgastante e difícil do que normalmente já é. Admiro e valorizo imenso os cientistas a fazer investigação em Portugal por terem de enfrentar algumas dificuldades adicionais. Admiro igualmente os cientistas que saíram do pais por abdicarem da família, amigos e do país. Tenho orgulho de ser portuguesa e de conhecer neurocientistas portugueses de alta qualidade, quer em Portugal quer no estrangeiro.

 

Que ferramentas do GPS lhe parecem particularmente interessantes, e porquê?

 

Quero em primeiro lugar felicitar a iniciativa da Fundação Francisco Manuel dos Santos na criação da rede GPS. Acho que é extremamente importante a divulgação da localização dos portugueses que se encontram espalhados pelo mundo. Esta iniciativa não só revela o espírito aventureiro e empreendedor dos cientistas portugueses, como torna possível a troca de ideias e contactos entre os portugueses, independentemente da sua localização e especialização profissional. Penso que esta iniciativa realça também a qualidade dos cientistas portugueses cujo valor é apreciado onde quer que estejam. 

Espero sinceramente que mais portugueses se registem à rede GPS, pois tenho a certeza de que existem muitos mais aventureiros espalhados por outros cantinhos do mundo.    

 

Consulte o perfil de Raquel Abreu no GPS – Global Portuguese Scientists.

GPS é um projecto da Fundação Francisco Manuel dos Santos com a agência Ciência Viva e a Universidade de Aveiro.

 

GPS/Fundação Francisco Manuel dos Santos


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