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Quem tem medo do feminismo?

17 Fev 2018 - 14h55 - 5.264 caracteres

O contexto do movimento #MeToo, a resposta surgida em França pela pena de 100 mulheres, a contra-resposta imediata observada naquele país, bem como a clivagem em face de uma questão que afecta mulheres e homens, obriga-nos, inevitavelmente, a reflectir acerca do feminismo. Sem dúvida que, nos seus fermentos ditos históricos, o feminismo surge no reverso da cidadania burguesa, a qual, seguindo Joan B. Landes, se construiu não apenas sem as mulheres, mas claramente contra elas. O século XIX, vestido de fraque e cartola, por um lado, ou ostentando as mazelas de uma industrialização progressiva, por outro, via nos valores femininos uma carta fechada, ostentadora dos segredos de uma líbido cujos perigos vestiram de luto. Todavia, não será despiciente, por exemplo, lembrarmo-nos de como a figura da prostituta, emparceirando com o anjo branco (da esposa), recobriu o imaginário da arte.

Portanto, o século XIX, contra o qual lutamos, e do qual provimos ainda, recobre-nos como um corvo negro. Tracejemos o feminismo nos seus fermentos ditos históricos: século XIX, a luta pelo espaço público; anos 60-70 do século XX, a reclamação pelo direito à vida privada e firmação da igualdade; anos 90 do século XX e em diante, a percolação das reivindicações anteriores e afinação de valores, pugnando pela inscrição na sociedade. Todavia, o feminismo-feminino possui um lastro mais profundo e provém de uma verdadeira história nocturna, no sentido que a esta dá Carlo Ginzburg. Curioso, mesmo, é que figuras incontornáveis do espectro feminista, e que são quase sempre trazidas à colação, como é o caso de Simone de Beauvoir, revelem uma clara irritação em face de um problema que se crê ser das mulheres: é com essa irritação que começa O Segundo Sexo, obra lapidar da filósofa francesa.

Relembre-se, por tal, a abertura do Volume I de O Segundo Sexo: “Hesitei muito tempo em escrever um livro sobre a mulher. O tema é irritante, principalmente para as mulheres. E não é novo. A querela do feminismo fez correr rios de tinta e está agora mais ou menos encerrada. Não toquemos mais nisso…” Ano: 1949. É curiosa, de facto, a forma como a questão “feminista” provoca desconforto, apresentando-se a palavra tantas vezes numa asserção transitiva. Por exemplo, Victoria Camps, autora do sintomático O Século das Mulheres, que terá sido o XX, vota-lhe, à palavra, oração fúnebre: chegaria o tempo em que deixaria de ser necessário pronunciá-la, visto ter cumprido o seu plano de acção. Tal plano de acção, geralmente, ancora-se na conquista da igualdade; paradoxalmente, o desconforto assinalado para Simone de Beauvoir ou para Victoria Camps escora-se na diferença. E será precisamente na polaridade igualdade/diferença que se jogam os dados de uma “política dos sexos”, expressão bem elucidativa de Sylviane Agacinski, que nomeia uma obra escrita com urgência no ano de 1998: “Nunca senti tanta vontade de escrever um livro. Deitei mãos à obra sem premeditação, como sob o efeito de uma necessidade pessoal, abandonando outros trabalhos já começados. No entanto, a conjuntura também teve a sua influência: em Junho de 1996, um grupo de mulheres políticas, superando as clivagens habituais, lançava um manifesto pró-paridade, reclamando medidas voluntaristas que estabelecessem uma igualdade efectiva entre homens e mulheres nas instâncias de decisão”, diz-nos.

Ou seja, a questão do feminino/masculino terá de manter-se na fina linha que a polaridade igualdade/diferença lhe reserva: se pender para a igualdade corre o risco de ser película discursiva sem referencial existencial; se pender para a diferença corre o risco de se perder numa atomização incapaz de transcendência. Recuperando Sylviane Agacinski, “[…] devemos pôr radicalmente em causa a hierarquia dos sexos e a valorização dos modelos masculinos. Mas também assumir a diferença dos sexos, reconhecer nela a origem da diversidade humana e basear nela a exigência de novos modos de partilha.” Interrogamo-nos, como faz a pensadora francesa: “Não será, para cada um de nós, o outro sexo o rosto mais próximo do estranho?” E acabamos como ela, ao abrir a Política dos Sexos: “É portanto politicamente decisivo sabermos como é reconhecida ou pelo contrário denegada a diferença dos sexos. Porque da maneira como pensamos o outro sexo depende a maneira como pensamos o outro em geral.”

 

Cláudia Ferreira


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Cláudia Ferreira

Cláudia Ferreira é natural de Coimbra. Licenciada em História/var. História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tendo frequentado Estética e Filosofia da Arte na FLUCL, em Lisboa, sendo nessa mesma cidade que viria a concluir o mestrado em Estudos sobre a Mulher – As Mulheres na Sociedade e na Cultura, concretamente, na FCSH da Universidade Nova de Lisboa, para, em 2019, obter o doutoramento em Estudos Contemporâneos na Universidade de Coimbra com a tese intitulada O Rosto das Horas: do feminino e do masculino, com a arte. É investigadora do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX – CEIS20 e desempenha as funções de Técnica Superior na Câmara Municipal de Condeixa.


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