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«Quase todos conhecemos pelo menos uma pessoa que sofreu cancro no estômago»

04 Dez 2018 - 15h36 - 9.704 caracteres

Entrevista a Eva Cunha, investigadora do Centro de Medicina Molecular da Universidade de Oslo.

 

«Os testes estão disponíveis, o tratamento é possível e podemos evitar este problema de saúde pública que afecta uma grande parte da população portuguesa.»

 

Entrevista:

 

Pode descrever de forma sucinta (para nós, leigos) o que faz profissionalmente?

 

Trabalho em diferentes áreas de investigação biomédica. Uma delas sendo um problema de saúde pública com alta incidência na população portuguesa, directamente relacionado com o cancro do estômago, o quinto tipo de cancro mais comum e o terceiro mais mortal de todos os cancros no mundo. Em Portugal, temos a taxa de mortalidade mais elevada da Europa ocidental por cancro do estômago. A grande causa de tal taxa de mortalidade é a infecção cronica por uma bactéria, a Helicobacter pylori, que infecta o estômago humano e é responsável pelo desenvolvimento de úlceras gástricas e cancro do estômago (Prémio Nobel da Medicina 2005). Apesar da clara ligação identificada entre a infecção e o desenvolvimento de cancro do estômago, este problema continua a ser maioritariamente ignorado. A via de transmissão não está totalmente estabelecida, mas existem indícios de transmissão por contacto oral, como por exemplo saliva ou alimentos contaminados, sendo importante manter cuidados de higiene. Para entender a dimensão e o impacto do problema, devemos perguntar-nos: quantas pessoas conhecemos que sofreram cancro do estômago? E comparado com outros problemas de saúde? Na população portuguesa, quase todos conhecemos pelo menos uma pessoa.

Existem formas de testar a infecção, mas algumas não são comparticipadas pelo sistema nacional de saúde. A endoscopia é comparticipada, mas a pedido do paciente que normalmente desconhece a existência deste problema. Alternativamente, é possível levar a cabo um teste de carbono 13, que é menos invasivo (requer beber um líquido e soprar para um pacotinho), mas que custa cerca de 50 euros em Portugal. Quanto ao tratamento, um dos mais generalizados, consiste em tomar 3 ou 4 antibióticos e um inibidor de transportador de protōes (mais conhecido pelos nomes comerciais de Omeprazol, Pantoprazol etc). Recentemente, em Portugal, foi aprovado o tratamento de quatro antibióticos com bismuto que é a via de tratamento mais eficiente. O tratamento tem de ser levado a sério uma vez que existe um crescimento da resistência das bactérias ao tratamento.

Concluindo: os testes estão disponíveis, o tratamento é possível e podemos evitar este problema de saúde pública que afecta uma grande parte da população portuguesa. O teste conjuntamente com os antibióticos são um mal menor quando comparados com o desenvolvimento de cancro do estômago. Entretanto, eu trabalharei para o desenvolvimento de um fármaco que ultrapasse os mecanismos de resistência aos antibióticos que a bactéria usa, tornando os medicamentos mais eficientes e mais específicos, para ultrapassar a crescente resistência aos antibióticos já existentes. Neste momento, já identificámos alguns inibidores que se ligam especificamente a uma proteína essencial para a sobrevivência de Helicobacter pylori, e planeamos testar a eficiência destes inibidores em células. O seguinte passo será testar a eficiência em animais modelo infectados com H. pylori.

 

Agora pedimos-lhe que tente contagiar-nos: o que há de particularmente entusiasmante na sua área de trabalho?

 

Com o trabalho que desenvolvo, tenho a possibilidade de dar um grande contributo para encontrar respostas para problemas que afectam a saúde pública. Actualmente estou até a usar uma técnica que foi reconhecida com o Prémio Nobel da Química em 2017, a microscopia electrónica. Esta técnica permite-me estudar a forma de certas proteínas  para conseguirmos desenvolver novos fármacos que inibem ou aumentam a sua actividade. Adicionalmente, este tipo de investigação básica permite o desenvolvimento de outras linhas de investigação em diferentes áreas, facilitando assim o avanço da investigação em biomedicina e do panorama cientifico geral.

 

Por que motivos decidiu fazer períodos de investigação no estrangeiro e o que encontrou de inesperado nessa realidade académica?

 

Após concluir a licenciatura em Bioquímica pela Universidade do Porto em 2006, mudei-me para os EUA para continuar a minha formação académica.  Concluí o doutoramento em Biofísica na Universidade Johns Hopkins, considerada uma das melhores universidades do mundo, onde encontrei apoio a nível intelectual, logístico e financeiro para desenvolver linhas de investigação arrojadas. As razões pelas quais saí de Portugal devem-se maioritariamente ao meu interesse em áreas de investigação para as quais há pouco ou nenhum apoio financeiro em Portugal e à precariedade e incerteza do futuro nas áreas para as quais existe algum financiamento. Nos EUA, investiguei como produzir biocombustíveis mais baratos e mais eficientes, usando engenharia de proteínas capazes de degradar celulose para produzir glucose.

Em 2013, regressei à Europa e apesar de ter considerado um retorno a Portugal, o facto de não haver contratos de investigação e o apoio financeiro e logístico do estado continuar a ser pouco, decidi ir para Espanha onde obtive um contrato de pós-doutoramento e investiguei o receptor responsável pela entrada do vírus da hepatite C nas células humanas. Vendo os avanços relativos ao desenvolvimento de microscopia electrónica, vim em 2016 para o Instituto Max Planck de Biofísica em Frankfurt, onde investiguei e investigo proteínas de membrana humanas cuja função está relacionada com várias doenças humanas como Parkinson, Alzheimer, etc. Recentemente, fui contratada pela Universidade de Oslo na Noruega como investigadora e recebi apoio financeiro da Comissão Europeia, através do programa Marie Curie Individual Fellowship, onde, para além da investigação em H. Pylori, também irei investigar proteínas de membranas humanas para as quais não há estrutura conhecida, como o transportador humano de Vitamina C. Apesar da importância da Vitamina C na saúde humana, até hoje não há muito conhecimento sobre a sua estrutura, logo também não se sabe como a Vitamina C entra nas células.

 

Que apreciação faz do panorama científico português, tanto na sua área como de uma forma mais geral?

 

Tendo em conta a limitação de recursos em Portugal, o nível da investigação é excelente, o que só é possível graças ao grande esforço, muitas vezes pessoal, dos investigadores que querem permanecer no país. Existe escassez, irregularidade e descontinuidade no financiamento, o que dificulta em grande medida o desenvolvimento a longo prazo da investigação. Por outro lado, existe também a precariedade dos bolseiros. Os projectos de investigação devem ter continuidade e, sem apoio logístico e financeiro, é muito difícil desenvolver linhas de investigação contínuas.  Os cientistas portugueses estabelecem vários mecanismos para ultrapassar a precariedade financeira e logística que existe em Portugal através, por exemplo, de colaborações com instituições europeias, o que permite o acesso a tecnologia inexistente em Portugal. Um bom exemplo é a microscopia electrónica para biologia estrutural, com a qual eu trabalho, e para a qual não existe infraestrutura em Portugal. Os recursos humanos estão e querem estar, mas falta apoio financeiro e logístico.

 

Que ferramentas do GPS lhe parecem particularmente interessantes, e porquê?

 

É uma forma excelente de conectar os cientistas portugueses, saber onde estão, o que fazem, estabelecer colaborações e contactos. Além disso dá-nos a oportunidade de contactar com o público, o que é extremamente importante. A sociedade deve e tem que saber quais os resultados que o financiamento dedicado à ciência produz, quais os problemas com que trabalhamos e quais as consequências.

 

Consulte o perfil de Eva Cunha no site da UiO.

GPS é um projecto da Fundação Francisco Manuel dos Santos com a agência Ciência Viva e a Universidade de Aveiro.

 

GPS/Fundação Francisco Manuel dos Santos


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