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Ver todas as caras a derreter

04 Set 2020 - 15h09 - 5.780 caracteres

E se, de repente, as pessoas na sua televisão apresentassem o lado direito da face

distorcido? E se o lado direito da sua própria face aparecesse distorcida no espelho?

Este é o surpreendente caso de Augusto (nome fictício), de 59 anos, que foi publicado

recentemente na prestigiada revista científica Current Biology .

 

O estudo internacional foi levado a cabo por investigadores da Faculdade de

Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, em colaboração

com o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, o Dartmouth College e o MIT

(EUA).

Augusto possui uma condição neuropsicológica extremamente rara chamada

hemi-prosopometamorfopsia - são conhecidos apenas 25 casos em todo o mundo.

Augusto é incapaz de visualizar faces de uma forma normal, algo que lhe gera bastante

sofrimento.“Esta condição caracteriza-se geralmente pela perceção de uma distorção

nos olhos, nariz e/ou boca apenas num dos lados da face. Estas partes da face parecem

estar a descair, quase como se estivessem a derreter. Nada mais além de imagens de

faces causa estas distorções.”, refere Jorge Almeida, o investigador principal do estudo

e diretor do Proaction Lab.

Uma série de estudos com este paciente permitiu demonstrar pela primeira vez a

existência de uma etapa no processamento de faces em que estas são rodadas e

redimensionadas para corresponder a um padrão. “No processo de reconhecermos

uma face que estamos a ver, comparamos essa face com as que temos na nossa

memória. Assim, sempre que vemos uma face, o nosso cérebro cria uma

representação da mesma e alinha-a com um modelo que temos em memória”,

acrescenta o investigador. Este é, aliás, o modo como o reconhecimento digital de

faces usado pelas plataformas Facebook e Google funciona.

Além disso, com este estudo foi possível demonstrar que estas representações de

faces estão presentes nos dois hemisférios do cérebro e que as representações das

metades direita e esquerda das faces são dissociáveis. Assim, este estudo veio não só aumentar o conhecimento sobre o funcionamento do cérebro bem como apoiar com

evidência científica uma das metodologias de reconhecimento facial mais usadas

atualmente.

Como muitos outros pacientes com hemi-prospopometamorfosia, as distorções

experienciadas por Augusto foram causadas por uma lesão nos feixes de matéria

branca que ligam as áreas neuronais dedicadas a faces presentes nos hemisférios

cerebrais esquerdo e direito, impedindo o fluxo de informação entre eles..

Uma das experiências realizadas com Augusto prendia-se com a apresentação de

imagens de em diferentes perspetivas (de perfil esquerdo, de frente e de perfil

direito). Augusto indicou referiu que os olhos, boca e/ou nariz das faces apresentadas

pareciam estar descaídas - zonas a vermelho na imagem abaixo. Nenhuma outra

deformação foi reportada quando foram apresentadas imagens que não fossem faces

(automóveis, casas, etc). (Imagem 1)

Numa segunda experiência, os investigadores apresentaram imagens de faces em

formas muito distintas: as metades esquerda e direita das faces em separado, em

ambos os lados do campo visual (direito e esquerdo) e rodadas a 90, 180 e 270 graus.

Independentemente de como as faces eram apresentadas, Augusto continuou a

reportar que as distorções afetavam as mesmas partes da face, representadas a vermelho nas imagens abaixo. Mesmo quando a face era invertida (boca em cima e

olhos em baixo), o paciente via as distorções agora no lado esquerdo. Continuava a ser

o olho direito que parecia estar a “derreter”, mesmo que na face invertida este esteja

localizado no lado esquerdo da face. (imagem 2)

“Ao apresentar faces em vários ângulos de rotação, verificámos que apenas as

características direitas da face estavam distorcidas, mesmo quando a face foi

apresentada invertida a 180 graus e essas partes da face se encontravam no lado

esquerdo. A única forma de explicar este resultado é de que ao processarmos faces,

rodá-las e criamos um modelo centrado na face e não no observador. Desta forma, o

olho direito neste modelo centrado na face é representado sempre como o olho

direito, mesmo que este esteja no nosso campo visual esquerdo como quando vemos

uma face invertida. Este modelo centrado na face é depois comparado com um

modelo já existente.”, indica Jorge Almeida.

Referência do artigo:

Almeida, J., Freixo, A., Tábuas-Pereira, M., Herald, S.B., Valério, D., Schu, G., Duro, D.,

Cunha, G., Bukhari, Q., Duchaine, B., & Santana, I. (2020). Face-Specific Perceptual

Distortions Reveal A View- and Orientation-Independent Face Template. Current

Biology , https://doi.org/10.1016/j.cub.2020.07.067 .

 

Legendas:

Imagem 1 - Ao serem apresentadas faces e objetos em diversas perspetivas, apenas as faces onde o lado direito estava visível apresentaram deformações.

Imagem 2 - Ao apresentar faces com diferentes rotações, a metade direita das faces continuou a ser a que mais apresentava deformações, independentemente da rotação.

 

Daniel Ribeiro – Comunicação de Ciência – Proaction Lab


© 2020 - Ciência na Imprensa Regional / Ciência Viva


Daniel Ribeiro (Proaction Laboratory)

Daniel Ribeiro é biólogo pela Universidade do Minho e mestre em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova de Lisboa. Já desempenhou funções enquanto Comunicador de Ciência no i3S - Instituto de Investigação e Inovação em Saúde, no Porto, bem como no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, em Lisboa. Atualmente integra a equipa de comunicação do PROACTION Lab, um laboratório de de investigação em Psicologia/Neurociências da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, focado na perceção e reconhecimento de objetos e ações.


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