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Um cristal quase com a idade da Terra

03 Mar 2014 - 14h49 - 3.817 caracteres

Com um cristal se escreve o amanhecer da Terra.

Foi descoberto um cristal com 4,4 mil milhões de anos cuja composição e estrutura indicam que a crosta terrestre teria nessa época água no estado líquido, muito mais cedo do que os cientistas julgavam. Esta nova descoberta vem ao encontro da hipótese de a vida poder ter surgido no nosso planeta antes do que os mais antigos registos fósseis indicam (3,4 mil milhões de anos). O cristal descoberto é um zircão e os resultados foram publicados no último número da “Nature Geoscience”.

O cristal foi extraído de um afloramento rochoso na região montanhosa de Jack Hills, no Oeste da Austrália. O cristal examinado tem apenas 400 micrómetros de tamanho, cerca do dobro do diâmetro de um cabelo humano. Mas este minúsculo zircão abre mais uma janela sobre o início da história da Terra.

Geologicamente, o zircão é classificado no grupo dos nesossilicatos. Quimicamente, é um silicato de zircónio (Zr é o elemento químico com o número atómico 40, descoberto em 1789 por Martin Klaproth, e isolado impuro, em 1824, por Berzelius) que apresenta a fórmula química ZrSiO4. O seu nome deriva do termo “zargum”, que é palavra árabe para “vermelho” e também nome persa para “dourado”.

Dependendo das rochas onde é encontrado, o mineral zircão pode ser incolor ou ter matizes amarelo douradas, vermelhas, castanhas ou mesmo verdes! E este cristal, gema semi-preciosa, pode ser encontrado em quase todas as partes da crosta da Terra! A razão para esta ubiquidade advém da sua antiquíssima origem e formação. De facto, ele está presente nos três principais grupos de rochas: as ígneas, as metamórficas e as sedimentares.

Esta dispersão por todo o planeta torna-o um cristal modelo para estudar os estados iniciais da formação da Terra. Mas como é que a partir de um cristal é possível saber a idade das rochas onde ele é encontrado?

O zircão “aloja” duas “impurezas” cujas propriedades radioactivas permitem a datação de períodos de tempo muito longos. Essas impurezas são átomos de urânio e de tório (símbolos químicos U e Th, respectivamente), e a sua quantidade relativa fornece informação sobre há quanto tempo estão alojados no zircão, ou seja, quando é que ele foi formado.

Ao longo de milhares de milhões de anos, os átomos de urânio incluídos no zircão transformam-se por decaimento radioactivo em isótopos de chumbo (Pb), que são átomos mais estáveis. A partir da proporção de isótopos de Pb em relação aos de U, os cientistas conseguem calcular a data de formação dos minerais onde aqueles se encontram.

Mas no estudo agora publicado os cientistas usaram uma segunda técnica: fizeram uma tomografia ao mineral, na qual observaram não só a proporção mas também a distribuição espacial de átomos de U e de Pb. Esta técnica confirmou este cristal como sendo o mais antigo até agora descoberto na Terra. Segundos os cientistas, este zircão ter-se-á formado só 140 milhões de anos após a formação do nosso planeta! É pois um cristal quase com a idade da Terra.

António Piedade


© 2014 - Ciência na Imprensa Regional / Ciência Viva


António Piedade

António Piedade é Bioquímico e Comunicador de Ciência. Publicou mais 700 artigos e crónicas de divulgação científica na imprensa portuguesa e 20 artigos em revistas científicas internacionais. É autor de nove livros de divulgação de ciência: "Íris Científica" (Mar da Palavra, 2005 - Plano Nacional de Leitura),"Caminhos de Ciência" com prefácio de Carlos Fiolhais (Imprensa Universidade de Coimbra, 2011), "Silêncio Prodigioso" (Ed. autor, 2012), "Íris Científica 2" (Ed. autor, 2014), "Diálogos com Ciência" (Ed. autor, 2015) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Íris Científica 3" (Ed. autor, 2016), "Íris Científica 4" (Ed. autor, 2017), "Íris Científica 5" (Ed. autor) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Diálogos com Ciência" (Ed. Trinta por um Linha, 2019 - Plano Nacional de Leitura) prefaciado por Carlos Fiolhais. Organiza regularmente ciclos de palestras de divulgação científica, entre os quais, o já muito popular "Ciência às Seis". Profere regularmente palestras de divulgação científica em escolas e outras instituições.


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