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Luta pela sobrevivência no intestino

08 Mar 2014 - 10h49 - 6.632 caracteres

Desvendada a diversidade escondida das bactérias

 

O nosso intestino aloja um número astronómico de bactérias, cerca de 100 vezes superior ao número de células do nosso corpo, conhecido por microbiota intestinal. Estas bactérias pertencem a milhares de espécies que coexistem, interagem entre si e são fundamentais para a nossa saúde. Embora seja claro que desequilíbrios entre as espécies podem resultar em doença, o ritmo a que cada espécie evolui no intestino permanece desconhecido, um processo que contribui para a possibilidade de uma dada espécie inócua se tornar prejudicial para o hospedeiro.

Na última edição da revista científica PLoS Genetics, três grupos de investigação do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC; Portugal), liderados por Isabel Gordo, juntaram esforços para desvendar, pela primeira vez, de que forma a bactéria Escherichia coli (E. coli), uma das primeiras espécies a colonizar o intestino humano à nascença, se adapta e evolui no intestino do rato. Os investigadores mostraram que rapidamente surgem E. coli com diferentes mutações e, consequentemente, uma grande variação genética é gerada ao longo do tempo nesta espécie. Os seus resultados revelam um grau de complexidade na microbiota intestinal desconhecido até agora. Este estudo demonstra o quão rica é a dinâmica evolutiva de cada bactéria num animal saudável e será fundamental no desenvolvimento de novas estratégias para combater doenças através da manipulação de micróbios do intestino.

Para Charles Darwin era desconhecido que o processo de seleção natural, que ele deduziu a partir da observação da diversidade no mundo que o rodeava, poderia ocorrer dentro de seu próprio corpo. Durante vários anos, a evolução de bactérias tem sido estudada em placas de Petri, as quais são ambientes altamente artificiais. Os laboratórios de Isabel Gordo, Karina Xavier e Jocelyne Demengeot, no IGC, aliaram os seus conhecimentos em evolução, microbiologia e imunologia, respectivamente, e propuseram-se a estudar a evolução de E. coli no seu ambiente natural: o intestino. Os investigadores colonizaram ratos com E. coli e analisaram as fezes dos ratos para mutações que surgiram durante a evolução bacteriana no interior do intestino. Os seus resultados indicam a ocorrência de muitas mutações, sendo que as bactérias que transportam mutações diferentes competem para se fixarem no intestino. Como resultado desta competição contínua surge um processo de evolução caracterizado por uma grande diversidade de estirpes de E. coli.

A fim de identificar quais os genes importantes para a adaptação ao intestino, os investigadores analisaram geneticamente as estirpes de E. coli que surgiram. Os resultados apontam para inativação de genes, permitindo às bactérias crescerem melhor na presença de produtos gerados pelo metabolismo do hospedeiro. Também foram observadas alterações nos genes que regulam a respiração anaeróbica (um processo necessário em ambientes com baixo teor em oxigénio, como é o caso do intestino). A equipa de investigação descobriu que, apesar da alta complexidade do ambiente natural estudado – o intestino – o processo evolutivo é altamente reprodutível, uma vez que ocorreram as mesmas mutações em populações de E. coli que evoluíram em diferentes ratos.

"É notável podermos estudar evolução com este nível de precisão quantitativa num dos ambientes mais complexos já explorados”, diz Isabel Gordo. “A competição que parece ocorrer dentro de nós entre estirpes emergentes na mesma espécie terá que ser integrada no futuro com a variação observada ao nível das diferentes espécies que habitam o intestino ao longo do tempo. Sem dúvida, isso abre espaço para futuras investigações interessantes em ecologia e evolução, tanto em hospedeiros saudáveis como no contexto de doença."

Karina Xavier acrescenta: "O que mais me surpreendeu com estas experiências foi, primeiro, a rapidez a que estas bactérias evoluem dentro do rato e, portanto, dentro dos nossos corpos, e em segundo lugar, a reprodutibilidade do percurso evolutivo. O facto de observarmos as mesmas mutações a aparecerem uma e outra vez, de cada vez que repetimos esta experiência, irá permitir-nos determinar quais os principais fatores que controlam a microbiota no nosso intestino, quer sejam a alimentação ingerida, o nosso sistema imunológico ou os micróbios que existem no ambiente."

Jocelyne Demengeot diz: "A maioria dos estudos atuais em Evolução e Ecologia de bactérias ainda são realizados in vitro, em placas de Petri. O nosso desafio a longo prazo, aqui provado exequível, é passar para campos de estudo que reproduzam a situação fisiológica, ou seja, fazer experimentação in vivo (em vertebrados). Quanto aos outros campos da ciência biomédica, esta abordagem é necessária para trilhar caminhos científicos, que eventualmente irão resultar numa aplicação para a saúde e doenças."

Esta investigação foi financiada pelo Conselho Europeu de Investigação no âmbito do Sétimo Programa-Quadro da Comunidade Europeia, pelo Howard Hughes Medical Institute (HHMI; EUA) e pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).

 

Ana Mena (IGC)

 

Referência do artigo

Barroso-Batista, J, Sousa, A, Lourenço, M, Bergman, ML, Sobral, D, Demengeot, J, Xavier, KB, and Gordo, I. (2014) The first steps of adaptation of Escherichia coli to the gut are dominated by soft sweeps. PLOS Genetics 10 (3): e1004182. http://www.plosgenetics.org/doi/pgen.1004182


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Ana Mena (Instituto Gulbenkian de Ciência)

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