Florir no espaço
Por: António Piedade
As plantas com flor, ou angiospérmicas, surgiram na história da vida no planeta Terra há pelo menos 130 milhões de anos e, depois delas, a relação entre animais e plantas mudou e intensificou-se. As plantas angiospérmicas mudaram os ecossistemas, a paisagem com as suas pétalas coloridas. Hoje, as plantas angiospérmicas englobam cerca de 230 mil espécies por toda a biosfera. A propósito, refira-se que a designação “angiospérmicas” deriva das palavras gregas "angios" para "urna", e "sperma" para "semente".
Mas já não só na Terra há plantas com flores! Na Estação Espacial Internacional já floriram plantas. Recorde-se, antes de mais, que a estação, um laboratório espacial concluído em 2011, encontra-se em órbita baixa (entre 340 km e 353 km), o que possibilita que possa ser vista da Terra a olho nu,e viaja a uma velocidade média de 27,700 km/h, completando 15,77 órbitas por dia.
No passado dia 16 de Janeiro, o astronauta norte-americano Scott Kelly, comandante da actual missão da Estação Espacial Internacional, publicou na sua conta no Twitter a seguinte frase: “Primeira flor de sempre a crescer no espaço faz a sua estreia”. A flor é de uma zínia (Zinnia é um género botânico pertencente à família Asteraceae) e a notícia espalhada naquela rede social fez com que inúmeros meios de comunicação social internacionais divulgassem o acontecimento, tal como se tivesse sido a primeira vez que uma planta tivesse florido no espaço.
Mas o entusiasmo de Scott Kelly deturpou a história e os meios de comunicação social publicaram o florescimento sem terem feito uma simples investigação na internet para confirmarem a primazia afirmada pelo astronauta.
É que, em abono da verdade, não foi esta a primeira vez que uma planta cresceu e floriu no espaço, mesmo naquela Estação Espacial. E, entre nós, que eu tivesse dado conta, só o jornalista de ciência Nicolau Ferreira, do jornal Público, investigou e escreveu a verdade sobre esta questão (ver https://www.publico.pt/ciencia/noticia/sera-que-a-primeira-flor-so-agora-nasceu-no-espaco-1720664).
De facto, há mais de 30 anos que várias missões espaciais conseguiram que diversas plantas florissem no espaço. Nicolau Ferreira consultou o site oficial do Guinness World Records e encontrou que “em 1982, a tripulação da estação espacial Saliut-7, pertencente à então União Soviética, cultivou a bordo algumas Arabidopsis. Durante o seu ciclo de vida de 40 dias, elas tornaram-se as primeiras plantas com flor a produzir sementes no espaço em gravidade zero”.
Acrescenta o jornalista do Público que “na estação russa Mir, entre 1996 e 1997 cultivou-se trigo, obtendo-se flores e sementes” e que “o astronauta norte-americano Donald Pettit mostrava em 2012 fotografias de uma flor de girassol durante a sua missão” na Estação Espacial Internacional.
O cultivo de plantas com flor no espaço sempre teve o objectivo científico de, por um lado, compreender o comportamento e desenvolvimento das plantas no espaço em situações de micro-gravidade, o que, por outro lado, ajuda os cientistas a compreenderem também o papel que a gravidade terrestre tem no crescimento das plantas no nosso planeta. Para além deste interesse científico, a investigação do cultivo de plantas no espaço é importante pois permite desenvolver as condições propícias para a produção de alimentos vegetais frescos para alimentar os astronautas. Este aspecto é crucial se a humanidade empreender futuramente viagens espaciais durante longos períodos de tempo, como seria o caso da colonização de outros planetas no Universo.
Voltando às zínias, a sua escolha para a presente missão não foi ao acaso. Segundo a NASA, aprender a cultivar esta espécie de planta é uma aproximação para o passo seguinte que será o de se conseguir cultivar o tomateiro. Ambas as plantas possuem um período de crescimento semelhante e precisam de florir. O início do cultivo de tomateiros está previsto para 2017, segundo a NASA.
Este caso das zínias é mais um exemplo de como a generalidade (como em tudo há excepções) da comunicação social trata as notícias de ciência a partir de fontes supostamente credíveis: acriticamente, traduzindo, replicando e publicando sem mais investigações. É um mau serviço, não só à ciência, mas sobretudo ao jornalismo em si próprio.
© 2016 - Ciência na Imprensa Regional / Ciência Viva
António Piedade
António Piedade é Bioquímico e Comunicador de Ciência. Publicou mais 700 artigos e crónicas de divulgação científica na imprensa portuguesa e 20 artigos em revistas científicas internacionais. É autor de nove livros de divulgação de ciência: "Íris Científica" (Mar da Palavra, 2005 - Plano Nacional de Leitura),"Caminhos de Ciência" com prefácio de Carlos Fiolhais (Imprensa Universidade de Coimbra, 2011), "Silêncio Prodigioso" (Ed. autor, 2012), "Íris Científica 2" (Ed. autor, 2014), "Diálogos com Ciência" (Ed. autor, 2015) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Íris Científica 3" (Ed. autor, 2016), "Íris Científica 4" (Ed. autor, 2017), "Íris Científica 5" (Ed. autor) prefaciado por Carlos Fiolhais, "Diálogos com Ciência" (Ed. Trinta por um Linha, 2019 - Plano Nacional de Leitura) prefaciado por Carlos Fiolhais. Organiza regularmente ciclos de palestras de divulgação científica, entre os quais, o já muito popular "Ciência às Seis". Profere regularmente palestras de divulgação científica em escolas e outras instituições.
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