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A força interior

06 Mar 2018 - 12h26 - 8.549 caracteres

O que nos faz mover? De onde vem a energia para as actividades do nosso dia-a-dia? O que nos faz continuamente movimentar, pensar, amar, zangar, ver, processar informação, enfim, viver? Qualquer máquina para funcionar requer uma fonte de energia e o nosso corpo não é excepção. Podemos com segurança dizer que retiramos energia dos nossos alimentos, apesar de não sermos tão completos como as plantas que retiram energia também do Sol, mas isso já é outra história…

Mas como é que um bolo de bacalhau, uma sardinha assada, um qualquer alimento se transforma em energia? Para responder a isto, vamos primeiro explorar dois conceitos básicos. O primeiro, a definição de metabolismo, ou seja, o conjunto das reacções químicas no interior das nossas células. Muitas destas reacções, para acontecerem, requerem energia. E essa energia está armazenada sob a forma de uma molécula chamada ATP (nada relacionado com o ténis, a abreviatura quer dizer adenosina trifosfato), a qual produzimos e consumimos kilos durante um dia inteiro. Mas voltemos à pergunta inicial…como é que um alimento se transforma em energia sob a forma de ATP? Acalmem-se aqueles que quererão abusar e comer imensos bolos de bacalhau porque “caraças! Está cheio de ATP!”. A história é bem mais maravilhosa e mostra o quão fantástico trabalham as nossas células.

A explicação foca-se numas pequenas estruturas das nossas células e que se chamam mitocôndrias. Apesar do nome fazer lembrar um monstro japonês dos anos 80 que destrói prédios e que tipicamente costumava lutar contra outros monstros igualmente com nome esquisito, a verdade é que essas estruturas (“organelos”) são as pilhas das nossas células. Todas as nossas células possuem múltiplas mitocôndrias (desde dezenas a centenas), com a excepção dos glóbulos vermelhos. Estruturalmente, e dependendo do orgão onde se localizam, as mitocôndrias (que são formadas por um sistema de dupla membrana) podem formar longos filamentos (como macarrão) ou formar estruturas mais redondas (como almondegas). De nota, quanto mais um órgão precisar de energia para funcionar (por exemplo o coração e outros músculos, ou o cérebro), mais mitocôndrias possui.

A mitocôndria é o único organelo, para além do núcleo, que possui o seu próprio ácido desoxirribonucleico (ADN) que codifica parte das proteínas que formam a maquinaria mitocondrial. Este ADN tem uma forma circular e difere do ADN nuclear que é linear. Este facto suporta a teoria de que o aparecimento da mitocôndria na célula teve origem há 1.5 mil milhões de anos, quando uma bactéria aeróbia (isto é, que respira oxigénio, como as nossas mitocôndrias) foi fagocitada (“comida”) por uma outra bactéria. Esta última, em vez de destruir a primeira, manteve-a funcional no seu interior, podendo sobreviver agora num ambiente rico em oxigénio, que é de facto um veneno (vejam o que acontece quando cortamos uma maçã e a deixamos exposta ao ar). Foi de facto desta relação simbiótica que nasceram as mitocôndrias, o que permitiu um salto evolutivo enorme e o facto de estarem a ler este texto.

Mas como é que uma coisa tão pequena produz a energia que precisamos? Sim, porque de facto, a mitocôndria é um organelo muito pequeno, medindo 100 a 1000x menos do que a cabeça de um alfinete. Os mecanismos de produção de energia pela mitocôndria foram descritos nos anos 70 por um investigador inglês chamado Peter Mitchell, que recebeu em 1978 o prémio Nobel em química pela teoria sobre a produção de energia pela mitocôndria.

O mecanismo pelo qual a mitocôndria produz ATP é fascinante. Proteínas embebidas na membrana interna mitocondrial transferem electrões retirados dos nutrientes até ao oxigénio, sendo este convertido a água (a verdadeira respiração). Neste processo, protões (H+) existentes no interior da mitocôndria (a “matriz”) são deslocados para o espaço entre as duas membranas mitocondriais. É assim formado um gradiente de protões que é depois usado por uma outra proteína membranar para produzir ATP, análogo a uma barragem hidroeléctrica. Esta proteína produtora de ATP (“ATP sintase”) é o sonho de qualquer engenheiro, já que o fluxo de protões desencadeia uma resposta mecânica com rotação de uma das suas partes, levando à produção de ATP. Se ainda não estão convencidos do quão extraordinário é este fenómeno, saibam que o gradiente de protões formado na mitocôndria tem uma componente eléctrica de cerca de 200 milivolts. Apesar de parecer muito pouco (nem chega a 1 volt), na verdade, se a membrana interna da mitocôndria tivesse 1 metro de espessura, os 200 milivolts ficam agora convertidos em alguns milhões de volts...a mesma energia de um relâmpago!

E se ainda não estão convencidos da importância das nossas mitocôndrias…estes organelos não servem “apenas” para produzir energia. São um verdadeiro organelo dos sete instrumentos com múltiplas funções críticas nas células. As mitocôndrias participam activamente na regulação do cálcio intracelular, na produção de derivados de oxigénio que podem ter um papel “bom” ou “mau” (dependendo da sua concentração e tipo), na síntese de várias moléculas importantes para a célula, e regulação da morte celular. De facto, as nossas mitocôndrias têm nas suas mãos o poder decisório de decidir acabar com célula onde estão! Confuso? Nem por isso…pensem que células que desenvolvem mutações no ADN poderão gerar tumores e como tal há que eliminar essas células rapidamente.

E o que pode afectar a saúde das nossas mitocôndrias? Muita coisa, de facto…cada vez mais sabemos que o ambiente (poluição, por exemplo) e os estilos de vida actuais contribuem para causar danos nas mitocôndrias nos diversos órgãos. Fumo do tabaco, excesso de consumo de bebidas alcoólicas, uma alimentação com excesso de gordura e sobretudo de açúcar, entre outras causas, podem levar a uma progressiva perda da capacidade mitocondrial para produzir energia. Por outras palavras, a nossa pilha vai perdendo carga. E todos sabemos o que acontece quando as pilhas se esgotam (geralmente “babam-se” e estragam o nosso aparelho favorito…). Aliás, não é à toa que o envelhecimento tem associado uma série de doenças que afectam o sistema nervoso central, o sistema cardiovascular, rins, fígado e outros órgãos. Sabe-se que à medida que envelhecemos, vamos também perdendo robustez mitocondrial até que a quebra de produção de ATP torna insustentável a viabilidade das células mais afectadas.

Mas nem tudo é mau. Podemos manter as nossas mitocôndrias mais tempo saudáveis de modo a continuarem a energizarem a nossa vida. E isso faz-se com alimentação adequada (nada de excessos), descanso em quantidades q.b. e sobretudo actividade física. Passar o dia sentado e comer alimentos ricos em gordura e sobretudo (muito mais importante) com excesso de açúcar não faz nada bem às nossas pilhas! E mais cedo ou mais tarde vamos sofrer com isso.

 

Paulo J. Oliveira


© 2018 - Ciência na Imprensa Regional / Ciência Viva


Paulo Oliveira

Em 1999, Paulo J. Oliveira licenciou-se em Bioquímica pela Universidade de Coimbra. Em 2003, concluiu o Doutoramento em Biologia Celular pela mesma Universidade. Depois de concluir o seu doutoramento, o Paulo Oliveira passou mais de três anos a trabalhar na Faculdade de Medicina da Universidade de Minnesota, Duluth, EUA, onde colaborou com vários investigadores e contribuiu para a publicação de vários artigos científicos. A actividade científica do Paulo Oliveira  é focada nos mecanismos de produção de energia pela célula, nomeadamente através de um organelo chamado mitocôndria. O Paulo Oliveira tem-se dedicado a estudos da alteração da função mitocondrial por atividade física e dieta, doenças metabólicas e cancro, e papel da mitocôndria na toxicidade de várias moléculas químicas. Em adição a isto, uma forte componente do trabalho do Paulo Oliveira foca o desenho racional de agentes mitocondriais com aplicações terapêuticas. O Paulo tem mais de 190 publicações científicas em revistas internacionais com peritagem científica, perto de 400 comunicações orais e em poster em reuniões científicas nacionais e internacionais e e é atualmente um dos mais reconhecidos investigadores Portugueses a estudar a mitocôndriatendo colaborações na Europa, África e nos EUA. 

É Professor Auxiliar Convidado na Universidade de Coimbra e um dos fundadores da start-up MitoTAG, que explora o desenvolvimento e aplicações de antioxidantes naturais dirigidos à mitocôndria. Como Investigador Principal, coordena no Centro de Neurociências e Biologia Celular (CNC), o laboratório MitoXT (“Mitochondrial Toxicology and Experimental Therapeutics”) e coordena a área de “Mitochondria, Metabolism and Disease” do CNC.


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